sexta-feira, 30 de junho de 2017

LIÇÃO DO DANILO

Matias (Arquivo JRS)

Danilo (Arquivo JRS)
                 
Roda de capoeira no Saco das Bananas (Arquivo JRS)
                                                                                                       
               Há trinta e dois anos nascia Danilo, filho de duas pessoas estimadas desde o tempo de ginásio, caiçaras mesmo! Nove anos depois reencontrei o Danilo vivendo intensamente no Saco das Bananas, aproveitando ao máximo da convivência com os avós Dito Madalena e Constantina, sobretudo na lida do mar e da roça. O amiguinho de reinação dele era o primo Matias.  Matias nos deixou há alguns anos, quando nem tinha vinte anos. Há poucos dias o Danilo também se foi. Deles, além das imagens que registrei, de crianças caiçaras sendo educadas na pequena comunidade (Saco dos Morcegos – Saco das Bananas), guardo algumas lições vividas ou repetidas  naquele tempo. Hoje repasso esta fala do pequeno Danilo:

               “Sabe que eu gosto de viver aqui? A minha casa é lá no morro, mas passo mais tempo perto da casa da minha vó. Eu vou na roça com ela, pesco com o meu avô e com os meus tios. Até de barco já pesquei. Gosto muito disso tudo, mas também adoro as histórias que meu avô conta! Tem de caçadas, de brigas por causa da terra. Sempre ele conta também dos antigos, dos escravos na fazenda. A minha vó sabe muitas histórias de assombração. E ela tem até hoje muito medo de coisas assim. Eu também tenho. Quase nós não vamos na cidade, mas já aprendi muitas histórias de Ubatuba. Sabe que o meu avô é homem corajoso, que não tem medo nem de abelha? De vez em quando ele tira mel para nós, lá de um buraco naquela árvore grande, depois da roça de mandioca. Numa noite ele falou assim, depois de ficar olhando um vaga-lume piscando em cima da mesa da sala: ‘Esse bicho só trabalha de noite. De dia deve ficar dormindo em alguma toca escura, em greta de pedra ou algum tipo de casa. A abelha só trabalha de dia, mas trabalha muito, só falhando em dia de chuva. Quando escurece, elas todas já estão recolhidas na colmeia, bem protegidas. Será que não dá para cruzar vaga-lume com abelha para a gente ver mais mel ainda?’. Nós rimos. Aí a minha vó disse: ‘Ditinho, deixa de falar besteira. Não vê que tudo funciona bem, dá certo porque desde que o mundo é mundo as coisas, os bichos, nós todos somos assim !?!’. E aí, desde aquela noite, eu pensei então que nós somos só mais um ocupante desta Terra, junto com todo tipo de bicho e de mato. Eu passarei por ela e espero deixar boas marcas”.

         Então, para parar por aqui, faço questão de citar o amigo Santiago Bernardes, enriquecido pela convivência junto aos caiçaras da praia do Camburi, em Ubatuba:

Nossos descendentes hoje carregam muitos sangues misturados, mas enquanto houver memórias em nosso sangue eles saberão que a verdade que se conta em livros nunca foi a verdade do que se viveu aqui.



sexta-feira, 23 de junho de 2017

ÁRVORE GENEALÓGICA




















       Mano Mingo, em https://barbatuba.blogspot.com.br/, continua, nas suas poesias, nos falando sempre do ser caiçara. 

O lado luso da minha família,
um certo Antonio, foi condenado a penar
nas perigosas colônias do Brasil por furtar
o coração de quem era proibido roubar.

O lado afro da minha família
estava em uma guerra entre tribos rivais,
um antigo esporte muito popular,
quando foi capturado, vendido para os mouros
e a África não reviu jamais.

O lado bugre da minha família
cruzou há mais de vinte mil anos
o estreito de Bering
na época de Era do Gelo,
não se acostumou com tanto frio,
veio seguindo a rota do sol,
até que chegou ao Rio,
Rio de Janeiro,
tirou o capote de pele de urso polar,
correu para a praia, mergulhou no mar
e se transformou em tupinambá.

Deles herdei esse jeito de escrever poemas.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

HOJE É UM TEXTO (II)

Ponto comercial (Arquivo JRS)

               De repente, chegando como onda em cima de onda, lembranças, saudades e palavras viram um texto. Faz-me lembrar daquela claridade de outros tempos que, depois da cantoria dos galos nas madrugadas, ia penetrando pelos vãos do telhado, juntamente com a algazarra dos passarinhos, deixando da noite passada os temores das fantásticas histórias de assombração e dos personagens encantados que nossos pais nos contavam. 
          Nesse ambiente fui alfabetizado. Minha primeira professora brincava com as palavras: “J-A-C-A é jaca. Ponham um acento agudo no derradeiro A que vai virar jacá, que é um cesto que vocês bem conhecem, para cargas. Tão comum é ver os caipiras descendo ou subindo pelos caminhos de Serra Acima com suas pesadas cargas! Agora vamos desenhar oito jacas. Desenharam? A primeira será jaca A, a segunda será jaca B, a terceira será jaca C, a quarta será jaca D, a quinta será jaca E, a sexta será jaca F, a oitava será....” E todos nós gritávamos: “Jaca H, professora!”. E nesse momento ela anunciava o horário do nosso recreio. Era hora de ir até a bica beber água, brincar e fazer nossas necessidades.   Nessa época, quando as cabeçudas (tainhas) chegavam, sempre tinha algum dos alunos trazendo ova seca para a professora. Que presente bem caiçara!!!

               E quando a professora explicou a importância da cedilha, usando a embalagem de açúcar?! Antes dessa lição eu lia acúcar porque não sabia pra que servia aquela “perninha”, aquele “rabinho” debaixo da letra C. E como estranhei aprender o CA - CO – CU a  partir da lição do cachorro! Depois vi que também se aplicava à lata de leite Mococa, que ficava sobre a mesa da tia Carmelina! Bem mais tarde, o Zé da Nhanhã me disse que foi na lição do cachorro que tinha abandonado a escola, depois da bronca da professora. Foi desse jeito: ele foi chamado à lousa para apontar e repetir as sílabas dessa lição. E foi. “Este é o CA, professora. Este é o CO, professora. Este é o CU, professora. É o CU do cachorro!”. Segundo ele, a sala se transformou numa estrondosa risada. "Ninguém parava de rir, Zezinho!". Por isso, morreu analfabeto o nosso querido Zé da Nhanhã. O dó!

sábado, 17 de junho de 2017

HOJE É UM TEXTO!

Vovó Eugênia, a nossa querida (Arquivo JRS)

Mana Ana, uma guerreira.(Arquivo JRS)
Loira, de olhos verdes: ela mesma! (Arquivo JRS)

               Está longe o meu primeiro contato com o mundo escolar, onde aprendi as primeiras lições na cartilha Caminho Suave. Foi na praia da Fortaleza, na casa da tia Martinha, na pequena sala, onde cada fila de carteiras era uma série. Acho que não chegávamos a vinte alunos. Lá estudavam a parentada (primos, tios...), a mana Ana e eu. Vieram as letras a partir das vogais; brotaram as palavras que deram sentido aos textos. Passei a ler o mundo, no final da década de 1960, com essas ferramentas.
               Vovó Eugênia nunca foi à escola, mas me deslumbrava na leitura do mundo quando nos falava da rosa grená, da rosa menina, da rosa negra, do alecrim, do coentro e da pimenta. Tecia sonhos olhando para os flocos brancos do algodoeiro na porta da cozinha. Se detendo nas raízes esparramadas no terreiro, dizia: “Ficam lá uma por uma semana de sol. A batata ganha mais doce e o inhame perde a baba”. Grande prazer viajar nas suas palavras!
               Numa tarde, bem depois disso, sentado na pedra redonda da porta da sala da casa onde minha vó não mais vivia, tentei sozinho, com as letras, algo parecido como a proeza dela. Escrevi:

               “A lágrima de Cristo, tão esverdeada, alcançou o enripamento de jiçara. De lá, do oitão, joga seus cipós com delicadas flores. A parte de baixo forma um bonito conjunto com as espadas de São Jorge. Tudo é muito bonito, inclusive as veias dos cupins no esteio de jacatirão, mas não causa nenhuma inveja ao cheiro dos jasmins, bem distribuídos no frondoso exemplar verde intenso, próximo da coluna da frente, na alta calçada onde balançávamos as pernas quando pequenos. Era o lugar preferido do Peri, o nosso cachorro vinagre.
               Eu espero nunca me esquecer da imagem da vovó nas vezes que passo por aqui. Um gesto diário dela era dar um gostoso abraço na copada sempre cheirosa do jasmineiro, tal como uma abelha. De vez em quando uma das netas, cheia de carinho, ajeitava uma flor em seu chapéu de palha. Quase sempre era um jasmim que inebriava ao redor. Ela apenas sorria; e, em passos miúdos, continuava os seus afazeres, lendo o mundo como ninguém mais lia”.

               Hoje, não consigo imaginar alguém viver sem ler e sem escrever... Sem registrar este mundo imediato, que sustenta a nossa existência.

               Ah! E aquela bendita luz de lamparina que, além de deixar preto o meu nariz, até assombração gerava nas sombras irrequietas?!? Tudo isso hoje é um texto!

terça-feira, 13 de junho de 2017

A LENDA DA GRUTA DO CURUÇÁ

"Entre o caminho e a prainha fica a Gruta do Curuçá"


O amigo Júlio me enviou a Lenda da Gruta do Curuçá, mas não consegui baixar a foto ilustrativa. Por isso, provisoriamente, vamos aproveitar a imagem de outra ocasião. No ponto I está o Buraco da Dita, no II a Toca de Jagoanharo.
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Mesmo que proibido, devido às crenças e superstições em torno daquele morro e que ali vivia o Boitatá , o menino tocador de flauta e outros curumins, depois de atravessarem a perigosa foz de Yperoig , chegaram à pequena e encantadora prainha do Curuçá . Entre brincadeiras de praia e de mar, Jagoanharo , o menino da flauta, observou um contínuo movimento de árvores e arbustos em certa parte da mata e que dali saia também um som suave. Curioso, convidou seus amigos para ver o que seria aquilo, mas com medo, ninguém o acompanhou. 
Jagoanharo era destemido, entrou na mata e descobriu uma gruta, de onde vinha o vento e o som. Apenas com sua inseparável flauta, dirigiu-se ao interior da caverna guiado por uma fosca luz que vinha de dentro; andou mais de duzentos passos e descobriu que o clarão vinha de cima, por uma brecha larga pela qual se enxergava o topo do morro; o túnel continuava, agora estreito, reluzente e “calçado” com pedras preciosas. Não arriscou em prosseguir, pegou sua flauta e pôs-se a tocar; a acústica maravilhosa fez o som ecoar por todas as brechas do morro, até a aldeia distante ouviu a música do menino. Voltou à praia onde seus amigos já não mais estavam. Andando pela costeira voltou à aldeia, onde seu pai, o índio Coaquira , o esperava com um cipó de timbopeva nas mãos..., mas não contou a ninguém a sua descoberta.
Ao amanhecer de certo dia, tocando sua flauta na praia de Yperoig, o menino pela primeira vez viu a “serpente” de fogo que saiu voando do alto do Curuçá, sumindo no horizonte. Intrigado com tal visão lembrou-se das pequenas chamas que avistara no interior da caverna: -Talvez sejam aquelas pequenas luzes, que juntas, esvoaçaram pela abertura no alto do morro? Pensou o pequeno curumim.
Aproveitou que a aldeia ainda dormia e da pequena canoa despojada na praia, em sua curiosidade e coragem remou até a prainha e mais uma vez entrou na gruta. Daquele ponto onde avistava cintilações de chamas, seguiu engatinhando o estreito túnel, até chegar a um lugar mais confortável, na qual pode ficar de pé; ali descobriu uma carcaça, esqueleto gigante de um animal que nunca tinha visto (provavelmente um Gliptodonte ). Mesmo amedrontado prosseguiu e, a menos de cem passadas sentiu uma corrente de ar mais fresco, o que fez continuar e tão logo se deparar com a “saída” do túnel , uma caverna mais ampla, que despojava a sua frente um exuberante manguezal. Percebeu então que o túnel atravessava todo o morro do Curuçá, pois dali conseguia avistar o majestoso Votuporanga (hoje chamado de Pico do Corcovado).
Diante de intensa mata e imenso manguezal, decidiu voltar; encheu o ajó da flauta com pedras preciosas e iniciou a volta.....
Na aldeia todos se assustaram, viram e ouviram a fúria do Boitatá; a “serpente” de fogo, desta vez chegou a incendiar o topo do Curuçá e, do curumim Jagoanharo, nunca mais se teve notícias, só se ouvia o som de sua flauta.
Talvez, por ser “de cascalho”, o estrondo abalou as estruturas do morro e ocorreu um deslizamento interno, prendendo o menino lá dentro da caverna.
Bem mais tarde, com a chegada dos portugueses e com a presença dos jesuítas José de Anchieta e Manoel da Nóbrega na aldeia de Yperoig, os catequistas também observaram o Boitatá e constantemente o som de uma flauta que vinha do Curuçá; sabendo do fato ocorrido com o pequeno índio e aproveitando o momento festivo da “Paz de Iperoig”, cravaram no alto do morro do Curuçá, uma CRUZ, que teve duas finalidade: firmar o catolicismo na terra Tupinambá e acalmar a “alma da onça”. 
A flauta silenciou, mas depois de algum tempo, voltou a ser ouvida... até hoje.
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Até então, Curuçá, pela característica geológica do local, significava lugar de abundante cascalho, seixo; após o som da flauta e do cruzeiro, Curuçá aderiu também o significado de: “lugar de muita música” e lugar da “Cruz Grande”. Ybyty Curuçá = Morro de cascado - Morro da música - Morro da cruz; hoje, Morro do Curuçá com a Gruta do Curuçá.

domingo, 4 de junho de 2017

NÓS SOMOS OS RAMOS

         
Vô Estevan e vó Martinha (Arquivo JRS)

               Através da minha voz você saberá dos meus avós por parte de pai. Ambos foram gerados na beira do mar, embalados pelo barulho das ondas e assimilando desde cedo o cheiro da maresia. Assim se encorparam para nos sustentar na cultura caiçara. Vovô Estevan nasceu na Caçandoca, bem cedo ficou órfão de mãe. Também não custou muito para a gripe espanhola matar o pai dele. Assim, ele, o irmão e duas irmãs foram criados por outras pessoas da comunidade. Cresceu como pescador-roceiro. Vovó Martinha nasceu no Pulso. Ainda criança já trabalhava no alambique do avô. Logo se fez parteira e se dispôs o tanto que a vida permitiu a ajudar na vinda de crianças ao mundo. Dentre centenas de nascimentos, eu fui um deles.
               Vovó era decidida, tinha um temperamento forte. Com ela as coisas se resolviam andando. Quero dizer que as coisas não a angustiavam, não detinham suas insistentes passadas e seus persistentes falatórios. De todos se fazia amiga. Andava sempre com braçadas de mato, pois conhecia bem as ervas e seus usos.  Algumas orquídeas que tenho foram presentes dela.
               Vovô era mais tranquilo, nos contava histórias fantásticas. Tinha uma habilidade em encaixar as histórias antigas, de outros lugares distantes, no nosso viver caiçara. Assim, a casa da bruxa, na história de João e Maria, era uma casa de farinha com uma cobertura de sapê bem estragada, daquelas que já estava chegando aos quinze anos de serventia. O passarinho que se comunicava com uma princesa era um tié-sangue. O gigante limpava a bunda com bagaço de cana seco. E por aí seguia em suas narrativas. A gente nem piscava para não perder nada das emoções.

               Os momentos dos meus avós, se fosse nesta época do ano, era na apreensão da chegada das cabeçudas (tainhas) e nos festejos aos santos juninos (João, Antônio e Pedro). Somos os ramos dessa raiz que brotou no lagamar! Por isso, ontem, fui ao mercado de peixe com a minha Gal escolher uma tainha. Quatro quilos e meio: é mole?!? Naquele tempo seria a tara do cardume, a tainha maior para doar ao santo, em contribuição com a festa. Agora, o carvão está sendo avivado para... para... para.... Adivinhou?