sábado, 30 de dezembro de 2017

LEMBRANÇAS BOAS

Tio Aristides (Arquivo JRS)

               Ao chegar ao final de mais um ano, relembro de muitas coisas boas, de tantas pessoas queridas que são partes da minha existência. Como diria Guimarães Rosa: “O ar está com cheiro de lembrança”.

               Neste instante, meus pensamentos estão com o Tio Aristides que trava uma luta pela sua saúde, num hospital em Barretos. Ainda bem que meus primos – Arlete, Anita, Tidinho e Ninico – são carinhosos, dedicados aos pais. Também, né!?! Tia Marli e Tio Aristides sempre se deram muito bem, com uma entusiasmada disposição para a vida. Sempre amaram muito as crianças. Como disse um dia o Tio Neco: “Naquela casa tem-se a impressão que todos são crianças. O Aristides tem sorte de ter os filhos que tem”. Também penso assim. Eles brincam juntos, trabalham juntos, pescam juntos, festejam juntos... São solidários sempre. “Com eles não tem tempo ruim!”.

               Tio Aristides, o “Caneco”, além de entender de tudo na construção civil, também adora pescar, gosta de novela, de telefonar para as pessoas com muito otimismo sempre. Quando adolescente, ele levou uma ferroada de arraia, cuja ferida jamais cicatrizou. Por isso que jamais o víamos usando outra roupa que não fosse calça comprida. Outro detalhe do titio: trazer sempre um metro no bolso para tirar dúvida de distância no jogo de malha que ele tanto praticou no bairro do Sertão da Quina, nos finais de tarde. “O metro é o juiz da partida sempre!”. A tal ferida o levou à amputação logo abaixo do joelho, em 2008. Precisava ver a animação dele logo após ter vindo da cirurgia! “Estou novamente novinho em folha! Logo vamos marcar uma pescaria lá pro lado do Mar Virado!”.  Assim que se adaptou à prótese, ele voltou ao ritmo de sempre. Como eu o admiro, titio!

               Outra lembrança boa deste ano são os idosos do Lar Vicentino, do asilo, no centro de Ubatuba. Cada um com suas histórias, com seus dizeres... Chico Suré, já beirando os noventa anos, me disse: “João Moreira, meu pai, viveu cento e quinze anos. As pessoas chamavam ele de Suré, mas ele não gostava não. Ele ganhou este apelido porque era filho da Maria Suré, minha vó, escrava, que era nascido num lugar perto de São Luiz [do Paraitinga], na Vorta do Suré. É um lugar depois de uma curva, onde, entre dois morros, um largo espaço se abre. Desse lugar é que vem o apelido de Suré. Eu também morei lá quando era menino, trabalhei e cacei muito por lá com o meu pai. Depois disso viemos para Ubatuba, fomos morar no Sertão do Taquaral. Esses morros todos por aí eu conheço. Eu cacei por todo esse lugar”.


               À minha família, a todos os meus amigos e amigas que fazem parte desse ar cheio de lembranças: Feliz 2018!

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

DONA HAMAKO

"Meu pai adorava escrever" (Arquivo Harumi)
            Hamako Nishi Honda (15/02/1925 – 27/05/2015), a nossa querida Dona Maria Helena, em suas anotações, passa um pouco do que foi a vida vivida por imigrantes entre caiçaras de Iguape,  Sete Barras e outras no litoral sul do Estado de São Paulo. De vez em quando volto a ler o Caderno de Hamako para me recordar das nossas lidas de outros tempos e das gostosas prosas com essa mulher tão simples, tão nossa.
           
                  Imagino a cidade de Iguape em outros tempos e agora; que me faz recordar dos  amigos Telles, Denivaldo, Wilson, Fisher, Colaço..., dos bananais, da pesca da manjuba, do professor Diegues, da arquitetura colonial, do pessoal que adora fandango, das canoas desafiadoras, da religiosidade do povo, das experiências cooperativas de sustentabilidade... Enfim, Iguape de tantos caiçaras!

As pontes               
       Onde meu tio Matsumi morava chamava-se Quilombo. No Quilombo tinha dois rios. Meu pai é quem fez a ponte, depois de tirar madeira no mato com o camarada que trabalhava com ele. O rio era grande, bem largo, tinha mais ou menos cinquenta metros cada um. Eu gostava de contar as tábuas quando tinha. A ponte era bonita, tinha parapeito para as pessoas não caírem.

A mudança        
               Nos mudamos para a Barra do Etá. Fomos em três pessoas adiante: meu pai, meu irmão Tamotsu e eu. No rio Ribeira de Iguape, que passava em frente de casa, entrava o rio Etá [se encontravam].
               A água do rio Ribeira era escura; a do rio Etá era clara. Nós usávamos a água do rio Etá. Levávamos a água desse rio para fazer comida e para o ofurô também. Eu carregava a água com duas latas de querosene nos ombros. Chama-se tembinabo. Era mais ou menos assim:
 

               A distância era mais ou menos cinquenta metros de casa. Eu subia o morro com as latas. Lavava roupa no rio. Tinha a canoa para ficar dentro dela. Como eu ainda era pequena, era difícil lavar roupas do meu pai e do meu irmão.
               No começo ele plantava arroz. O padrinho da minha irmã tinha emprestado um pedaço de terra para a plantação de arroz. Meu pai e meu irmão fizeram a cerca com arame bem firme e  passou [arou] a terra para ficar bem fofa e poder plantar sementes de arroz ou outras coisas. Depois toda gente veio morar juntos. Aí ficou melhor porque todos ajudavam.


quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

ANO NOVO... PÉSSIMOS HÁBITOS

Era um salão nobre, local de tantas eventos! (Arquivo JRS)

427 hectares de ecologia! (Arquivo Luzia 1982)

               Não é de hoje que notamos a degradação ambiental em nosso litoral. A cada ano que passa se  cumpre a profecia de alguém lá do passado, do começo do século XX. Dizia o meu pai que o avô dele era analfabeto, viveu entre as lidas da pesca e da roça na praia do Pulso, só vinha de vez em quando na cidade, mas dizia coisas inacreditáveis: “Por aqui terá uma estrada, passarão muitos carros e construirão muitas casas. Os bens serão baratos, existirão em quantidade que nem dá para imaginar, fazendo com que muita gente os tratem como descartáveis. Mas eu não estarei vivo para testemunhar isso”.

               Hoje me recordei disso porque está evidente que o descarte de lixo pelas esquinas, em terrenos baldios, nas margens da rodovia, nos rios, nas praias etc. está cada vez pior. E o que dizer das invasões na Mata Atlântica, das derrubadas de morros para terraplanagem etc.? Elas só aumentam! Agora, na temporada de férias das crianças, parece que redobra o desafio de ensiná-las como não se comportar, deixar de seguir os péssimos exemplos perante a natureza (que é tão importante para nós e essencial para a vida).

               O assunto hoje é a Estação Experimental de Ubatuba, ou Horto Florestal. (Pode até ter outro nome, mas foi assim que aprendemos desde criança). O local se apresenta como um cenário desolador, com pouquíssimas pessoas na manutenção, sem as pesquisas de outros tempos... Acredito que a atual administração da Unidade de Pesquisa está fazendo o máximo, mas o governo estadual parece sustentar outros projetos. Que Estado é este? Olho para um lado o mato está invadindo, para o outro avisto as ruínas de um salão que até o ano 2000 ainda era nobre, com agenda sempre repleta de eventos. Adentrando, na área dos bambuzais quase não se distingue as variedades que ali resistem. Me senti desolado onde havia mais de uma centena de variedades de mandioca em estudos há menos de vinte anos. O caminho antigo, que partia do terreno de secagem de café e nos levava ao “Carreiro das Antas”, já se perdeu na mata crescida. Nem a plantação de erva mate eu consegui distinguir na minha última caminhada que fiz. Me parece evidente que essa área pública está sendo preparada para ser privatizada. Aí, alguém (pode ser até estrangeiro) vai ganhar mais dinheiro, aumentar seu capital nesse nosso patrimônio, onde tantos caiçaras e caipiras trabalharam; onde ainda tem, além da flora e fauna, resquícios do nosso passado. Pergunto: Por que o município não tem funcionários profissionais em História e em Arqueologia? Por que não tem um projeto de Turismo Cultural? 

               Enfim, o ano pode ser novo, mas os hábitos velhos de cobiça, de descartar o lixo em qualquer lugar, de sujar em todos os sentidos continuam. Pensemos nesta geração e nas futuras. Pensemos em Ubatuba. Pensemos na natureza preservada, com um potencial imenso de vida e de riquezas!

               Ah! Sabe que uma grande riqueza do “Horto” é a Fonte da Amizade? Que tal conhecê-la? (A placa já se foi, mas continua valendo o lema: A natureza criou. Nós oferecemos. Ajude a preservar).

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

A MAGIA DA VIDA ESCOLAR

Momentos (Arquivo JRS)


               Eu nasci na beira do mar, acostumado com tempo de sol e tempo de chuva determinando as atividades na roça e na pesca. “Somos caiçaras, gente simples sim senhor!”.  Porém, gente de fora foi chegando conforme as estradas foram se abrindo: turistas!
               O turismo trouxe, além da diversidade migratória e de muitas outras coisas, a preocupação com os estudos, a crença de que  com estudo as chances de ter uma vida melhor aumentam. Assim, nossos pais nos matricularam para ao menos sabermos o básico:  ler, escrever e fazer contas.
               Tal como os nossos pais e avós, ainda lemos os sinais da natureza que estão em nosso entorno. Mas a leitura dos livros ultrapassa em muito esse nosso dom, essa nossa herança cultural! É por isso que me regozijo com a juventude que leva a sério os estudos. É por isso que não me canso de elogiar a minha filha, o meu filho, as minhas sobrinhas e os meus sobrinhos que tantas alegrias nos dão em seus esforços escolares!

               Por esses dias, em 15 de dezembro, foi a vez do Estevan ultrapassar mais um marco na vida escolar. A turma dele se destacou pela amizade que construiu.  Senti isso em muitos momentos nesses anos todos, e, também quando, após a cerimônia, três famílias se reuniram numa só mesa, num restaurante, para verem seus filhos se confraternizarem mais uma vez.  Agora eles e elas se separam em busca de suas particularidades, de suas preferências profissionais. Certo é que muitos laços de amizade serão duradouros. “Eu acho é pouco!”

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

BAMBU COMO AGRICULTURA FAMILIAR

Bambuzal no Caminho da Justa (Arquivo  JRS)

        Hoje, lendo O GUARUÇÁ, encontrei uma matéria da jornalista Maria Angélica, de São Sebastião. Muito interessante mesmo, sobretudo aos caiçaras que mantém sua tradição de balaios e cestarias! Aí vai na íntegra, amiga!



    Com a Lei 12.484/2011 o bambu passou a ser considerado agricultura familiar, assim como o palmito, as famílias podem fazer o manejo e com isso gerar renda. Do bambu é usada a taquara para vários objetos como: luminárias, cestos, utensílios de cozinha, móveis, portões, instrumentos musicais, com a essência: perfumes e cosméticos. O broto do bambu pode ser cozido e vendido como o palmito e as folhas são usadas para chás.

     Em 1987 a arquiteta Chu Ming Silveira, veio morar em Ilhabela e aqui, aprendeu com os caiçaras como usar materiais como palha, bambu, pedras e plantas, criando assim o novo conceito chamado “pós-caiçara”. Hoje em dia muitas casas seguem esse conceito e existe em Ilhabela, no Morro de Santa Tereza, uma vila construída por ela, que é visitada por alunos de arquitetura do Brasil inteiro.

      Em Caraguatatuba, na inauguração do Serramar Shopping, foi uma surpresa ver que grandes áreas foram cobertas com bambu. Quem projetou seguiu a arquitetura pós-caiçara e o local ficou iluminado e agradável no verão.

   Em Ilhabela está sendo realizado o Projeto Tribuzana, uma parceria do Ministério Público Federal, Prefeitura e comunidades caiçaras, que visa o levantamento das propriedades, recuperação da cultura local e geração de renda. Hoje tem 8 monitores capacitando os caiçaras para trabalhar com bambu na Ilha de Vitória.

      No Quilombo da Fazenda em Picinguaba-Ubatuba, estão trabalhando com bambu e em 2016 foi editado o livro “O artesanato tradicional – tecendo saberes”, pesquisa feita por Edirlaine Reis e Leonardo Estevan.

      No mês de novembro na Praia de Juquehy em São Sebastião aconteceu o Bamboo Fest 2017, foram 4 dias de oficinas num encontro nacional de bambuzeiros.

     Em São Sebastião um aluno do curso de Meio Ambiente da ETEC - Rafael Guedes, está fazendo seu TCC sobre o bambu e isso pode evoluir para uma oficina orientada pela Casa da Agricultura de São Sebastião e Ilhabela.

       No Brasil são mais de 600 espécies de bambu, o sentido da palavra CAIÇARA, na origem tupi, já descreve uma cerca de divisa entre as roças e casas - certamente de taquaras, por isso acho importante que essas oficinas se multipliquem uma vez que o bambu é encontrado com facilidade, em todas as cidades do Litoral Norte.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

DA PROA DA MINHA CANOA

Muro na capital paulista (Arquivo JRS)

Instrumentos no Casarão (Arquivo JRS)

            De acordo com o dicionário, salvaguardar  é tomar medidas para pôr (algo ou alguém) fora de perigo; proteger, defender. O Encontro de Fandango Caiçara em Ubatuba teve este objetivo.

            A salvaguarda do fandango, da canoa caiçara... Enfim, da cultura  caiçara, implica muitos aspectos, tais como: garantia de território, festividade, continuidade dos saberes e das tradições pelas novas gerações, artesanato, religiosidade, técnicas, interação/interdependência com o meio ambiente etc.

            A formação acadêmica, em contato com os sujeitos dessa cultura (caiçara), só poderá ser um reforço, “um biotônico” conforme costuma dizer o Élvio; algo que aumentará e alimentará a nossa resistência, pois poderá nos mostrar outras linhas de reflexão ao mesmo tempo que vai nos apresentando fatos, experiências muitas vezes externas, que contribuem com a cimentação das formas de resistência que  aí estão, fomentando outras alternativas. Foi assim que eu enxerguei as intervenções dos acadêmicos e acadêmicas durante o “Encontro de Ubatuba” neste fim de semana que passou. Dentre as diversas falas, me sensibilizei com a objetividade do Peter Santos Németh, acadêmico da Universidade de São Paulo (USP) que se sentiu despertado a partir da convivência com os pescadores da praia da Enseada.

            “Por volta de 2004, saindo para  pescar na madrugada com o Pedro, notei que rumávamos para a escuridão, na direção do Boqueirão, ao mesmo tempo em que as luzes da Enseada iam desaparecendo. Enquanto a canoa deslizava na água, eu prestava atenção a tudo que o Pedro falava. Era um ensinamento sobre a sua vida, a sua cultura. Foi quando eu acordei para a importância da canoa caiçara. Naquele ambiente, na lida do mar, da mesma forma que o Pedro naquela ocasião fazia comigo, os velhos caiçaras foram passando a cultura para os filhos. ‘Um dia o Pedro aprendeu assim do seu pai e do seu avô’. Cheguei à conclusão que a canoa era o principal veículo dessa cultura. Veículo em dois sentidos: condução nas necessidades e condução da cultura. Veio daí a motivação para puxar um movimento pelo tombamento da canoa caiçara como patrimônio imaterial nosso”.

            Concluindo: a partir da canoa caiçara, da prosa com aquele pescador caiçara e com tantos outros da praia da Enseada, o Peter se viu impulsionado a fazer a sua canoa na USP. Esta sua canoa, esculpida continuamente pelo enxó da reflexão e da vivência junto ao povo caiçara, só tende a alargar os horizontes do Boqueirão alcançado pela canoa de pau. Ah! Agora também leva o fandango embarcado!


            O desafio é promover mais e mais ações que possibilitem às novas gerações rever rumos e dar mais forças nas remadas neste objetivo de salvaguardar a cultura caiçara em todos os aspectos possíveis. E viva todo o pessoal que se envolveu no Encontro de Fandango Caiçara em Ubatuba!

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

FESTANDO A RESISTÊNCIA

Fandangando no quintal do Velho Balthazar (Arquivo JRS)



               Festa do Fandango caiçara em Ubatuba: que final de semana!!! A caiçarada, nesta sexta-feira  (dia 8), depois de muito papo sério, atravessou a noite festando a resistência. Foi no “Casarão da Fundart” que o baile rompeu a madrugada no embalo do grupo Fandango Caiçara. No sábado, o papo sério começou com um café caiçara preparado pelo pessoal da praia da Barra Seca. Autoridades do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), universitários e pescadores refletiram a respeito da canoa caiçara, do fandango e de tudo que se relaciona a esse bem maior que é a nossa cultura. Depois, um farto almoço no jundu, quase no lagamar, várias canoas para se divertir e uma justa homenagem a Higino, o patriarca do lugar. No fim da tarde, com outras comunidades desde Paranaguá até Paraty, mais papo sério para fortalecer o fandango e outras formas de resistência neste território caiçara. À noite, novamente no salão do velho casarão, após um farto jantar, os tamancos marcaram compasso: o primeiro grupo veio de Tarituba, distrito de Paraty. Lindo demais! Crianças, adultos e idosos deram uma mostra de nossas tradições e porque é importante resistir à massificação cultural e aos cobiçadores de nossos bens; disso tudo que, do ajuntamento  de povos diversos, foi construído entre a serra e o mar. Depois outros grupos (Paraty, Pananaguá, Cananeia... ) se revezaram embalando chibas, cirandas, tontinhas e o baile animadíssimo, tornando o espaço pequeno para tanta gente. E o dia adentrou pelas portas do “Casarão do Balthazar” flagrando os animados tocadores e dançarinos à toda. O domingo continuou com farto café no local, seguido de encaminhamentos e avaliações. Após uma feijoada no Limoeiro, novamente os instrumentos se fizeram presentes para as despedidas. E tome alegria contagiante para bailar bem do jeito nosso! Peter, Paula, Pedro Caetano, Carneirinho, Roberto, Laureana, Ostinho... Bom rever toda essa gente maravilhosa!

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

REENCONTRO DE FESTEIROS

São Dito Fernandes (Arte Estevan)


               Era madrugada (03:30 horas) quando me levantei. Meu filho ainda estava acordado, com um desenho bem adiantado para homenagear o saudoso Dito Fernandes. “Já tô nele há cinco horas. Tá ficando bom?”. “Tá lindo, filho!”.
               O desenho retrata o mestre Dito Fernandes rodeado por aqueles santos festeiros como ele. Tá São Roque, tá São Gonçalo, tá São Benedito... tá a turma toda tantas vezes cantada, que continuará animando a coreografia da Congada de São Benedito do Sertão do Puruba. Olha o detalhe das nove rosas! “Agora vou dormir um pouco, pai. Acho que é o meu melhor desenho”.  “Também acho, filho. Tá de parabéns! Daqui a pouco eu também sairei para o trabalho. Bom descanso”.

               Além dessa turma toda, o Dito vai reencontrar o Pedro Brandão, o Horácio, o Orlando, o Dito da Laranja, o tio Maneco Armiro, o tio Durval, o Antônio do Puruba, o Maurício do Bonete, o Aristeu da Ponta Aguda, o Velho Macuco, o Otávio, o Santinho, o Romãozinho, o Zacarias Julião e tantos outros caiçaras que nos legaram essa musicalidade, esse lado festivo da nossa cultura.

               Conforme me indicou um dia o finado Antônio do Puruba, atrás do seu bar era a serraria do espanhol. “Era bem ali, tá vendo? Trabalhava muita gente beneficiando caxeta; depois era transportada em carro de boi até a praia da Justa, de onde era embarcada para Santos. O Fileto era quem conduzia a carga puxada pelos bois. Era uma turma grande, com muitos camaradas que vinham de Cunha. Desse encontro entre caiçaras e caipiras, surgiu o interesse pela congada. Os mestres foram se formando. Alguns deles: Ditinho Alves, Francisco Paulo, Fortunato...”

               Desde a década de 1980, após a morte do mestre Fortunato, o comando foi do Dito Fernandes. E aí, com uma família extensa, a Congada de Bastões do Sertão do Puruba se enraizou de vez entre nós. Eu recomendo: Youtube – Congada de Bastões de Ubatuba – Revelando São Paulo, postado por Karoline e Fabrício, em abril de 2012.

               Agora, com essa caiçarada toda se reencontrando com os santos festeiros, Mestre Dito Fernandes inicia o canto na sua viola:

               “Oi dá licença, minha guia, dá licença/
               Oi dá licença pra enfeitar a Companhia/
               Ponha nove rosa, ponha nove cravos, pra ficar bonito/
               Pra enfeitar São Benedito”.


               Dona Mocinha certamente vai continuar como contramestre da música. Dos seus filhos e netos, outros mestres irão despontar em memória do Dito Fernandes e de todos os caiçaras festeiros.

domingo, 3 de dezembro de 2017

A PEDRA DO TAPUÁ

Se não tiver peixe...tem fruta no palmiteiro para fazer suco (Arte Estevan)

                      De vez em quando, relendo textos de mais tempo, me recordo de detalhes relacionados a eles e vou dando os acréscimos. A Pedra do Tapuá é um desses casos. 
               Itapuã, de acordo com a tradição que vem dos antigos, da parte dos índios, quer dizer pedra que aparece, ponta de pedra. No caso, itapuã virou tapuá.
               O Velho Rita gostava de sentar no canto do Acaraú, na linha dos jambuís, olhar para o largo, apontar a Pedra do Tapuá, e contar momentos dos velhos pescadores e das fantásticas pescarias que ele presenciou ali. “O Scongelo, numa ocasião, conseguiu trazer um robalo de trinta quilos. Daquele bonito peixe, foi feito um almoço para o bispo de Santos que estava em visita pastoral por estas bandas. Comeu um mundaréu de gente daquele robalo”.
               Tapuá é uma pedra, uma laje que aflora no mar. Se avista a Pedra do Tapuá a partir do Caminho do Cais. Quando você estiver caminhando por lá, chegando na  metade do trajeto olhe um pouco mais para longe da costeira,   por sobre a Pedra do Morcego, em direção à Prainha do Padre. Você avistará uma pedra cercada por um mundão de água. É essa pedra que, desde os primeiros habitantes, há quinhentos anos, traz este nome: Tapuá.
               O finado Tião Mesquita dizia que o seu pai, ao vir da Fortaleza para o Itaguá, escolheu a Pedra do Tapuá como pesqueiro. “Comemos muitos robalos, sargos, sarambiguaras recolhidos pelo tresmalho do meu pai naquele lugar”.
               Os portugueses, os caiçaras e até os ingleses respeitaram o nome escolhido pelos índios. E chegou até nós! Sabe que acho isso muito impressionante! Está duvidando? Então procure a Carta do Almirantado Inglês, de 1870, localize o detalhe descrito à parte. Entre as profundidades meticulosamente assinaladas, há a referência destacada: Tapuá. É! Esses ingleses sabiam de muitas coisas! Não é à toa que, por tanto tempo, eles dominaram os mares!

               Alguns desses caiçaras que ainda estão por aí, na casa dos sessenta, setenta anos, que estudaram com professores bravos (Lauristano, Joaquim Lauro e outros), dizem que, depois de aplicarem os castigos escolares comuns daquele tempo, eles ameaçavam os alunos indisciplinados com a seguinte frase:     “Na próxima vez vai ficar na Pedra do Tapuá”. Eu, hein!? Credo!

sábado, 2 de dezembro de 2017

ADEUS, DITO FERNANDES

Dito Fernandes, Mocinha e eu (Foto Paulo Zumbi)


               Ontem (01/12/2017) faleceu o nosso estimado Dito Fernandes, grande mestre da Congada do Sertão do Puruba.

               Parece que passou pouco tempo desde quando eu conheci a comunidade do Sertão do Puruba, a família de Dito Fernandes e Mocinha e de outros tantos da grande família do lugar. Era o ano de 1981. Eu pesquisava e conhecia um pouco mais do lado norte do nosso município de Ubatuba. Ainda me lembro bem do dia chuvoso, com o casal forneando farinha de mandioca. A casa de farinha era logo ali, no cisqueiro, perto de uma arataca aliviada naquele momento, junto a um lindo pé de abricó. Até então eu nunca tinha visto desta árvore tão longe do jundu. Dentre as minhas indagações, estava a preocupação com a possível vinda de uma fábrica de armamentos, uma tal de Avibras, de São José dos Campos. No sertão, era uma imensa área divisando com aquela caiçarada.

               São dessa época os meus primeiros registros sobre a Congada de Bastões, cujo mestre era Dito Fernandes, tendo como contramestre o Anastácio. “ A Congada veio de Cunha, com os trabalhadores da caxeta. Desceu pelo caminho da Escorregosa”. A maioria dos que manejavam os bastões era do tronco dos Fernandes de Cristo. Outros parentes, tendo mudado dali, voltavam para compor o grupo e continuar a tradição. Era o caso do Pedro Brandão, do Decão, do Nísio e de outros. “Ai, meu São Benedito, ai licença nos dá, pra companhia sair na rua pra nós manejar...”. Todos os filhos e netos foram engrossando o caldo, dando a conhecer ao litoral inteiro essa linda tradição, parte da religiosidade popular. Uma das filhas, juntamente com o Papão, neto do Velho Rita, está marcando a cultura popular no bairro do Itaguá, dando novos rumos ao Cortiço. E a coisa continua se espalhando com as novas gerações.
               Outro detalhe das minhas memórias dos momentos que vivi com Dito Fernandes foram as caminhadas pela matas do Puruba. Ele tinha uma disposição fantástica. Eu o encontrava quase sempre pronto para sair pelas picadas da mata: de botas, com uma espingarda dependurada no ombro e convocando os cachorros. “Quércia, vem. Maluf, vem”. Dei muita risada quando o escutei  pela primeira vez chamando seus cachorros de caça. Que homenagem, hein?!?  Ah! Tempo bom! E o que dizer das grandes panelas de escaldado da dona Mocinha? “Ah! Não sei se vou oferecer dessa comida para o Zé!”. “Claro que pode oferecer, mulher! Não vê que ele é gente da gente, acostumado com tudo isso que nós somos?!?”.

               Viva Dito Fernandes!

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

VESTÍGIOS DA IDALINA


     


Idalina  cuidava do Ubatuba Hotel, depois se tornou proprietária. Imagens do arquivo Ubatuba Antiga


       Na unidade de ensino onde trabalho, no bairro do Ipiranguinha, hoje o diretor está “correndo” atrás de mais coisas da Idalina, patrona da escola. Lendo um texto não tão antigo, escrito pelo amigo Peter, me recordei que estou em dívida com o seu farto material. (Ainda não consegui produzir algo a contento, de acordo com o seu trabalho). Tudo gira em torno da ilha Anchieta, território de Albino, esposo da Idalina, e da Enseada, uma das praias da nossa infância. Boa leitura!

       Durante os últimos dois dias me debrucei sobre os três contratos de compra e venda da Ilha dos Porcos, hoje ilha Anchieta, mergulhando exatos 110 anos no passado, tempo da expropriação forçada de 148 pessoas, proprietárias de edificações, terras, plantações, benfeitorias, canaviais, cafezais, pomares e pelo menos 35 coqueiros. Noventa e cinco (95) "vendas" foram concretizadas pelos 92 proprietários de 1 ex-escola do sexo feminino, 2 casas-armazém sendo uma de secos, molhados e fazendas (tecidos), 4 galpões, 2 galpões de canoas, 1 rancho de canoas, totalizando 116 edificações.
       Cento e quarenta e cinco (145) pessoas adultas viviam em 7 localidades registradas, com exceção do sul da Ilha, onde proprietário algum foi citado nos contratos.
  Muitos sobrenomes familiares pude identificar: Gil, Jardim, Oliveira, Graça, de Jesus, de Goes, Peres, Conceição, Cabral Barbosa, Marcellino, Lopes, de Souza, dos Santos, entre outros.
     Descobri que o marido de Idalina Graça, provavelmente foi expulso do Mato Dentro [uma das localidades da ilha] e confirmei a origem da família Gil, do Mestre Antenor dos Santos como sendo mesmo no Parcelzinho conforme o relato dele. No entanto seu provável avô Daniel Gil foi expulso da Prainha, a mais povoada com 30 edificações, dez vezes mais do que no Parcelzinho, que abrigava apenas uma viúva, um viúvo e uma solteira, cada qual em sua casa de sapé, cujos vestígios o Antenor já me mostrou.
    Aproveito para reproduzir um pequeno trecho do livro Terra Tamoia de Idalina Graça onde podemos mesmo "sentir" a Praia da Enseada dos anos 1930.

CAPITULO I
A viagem
      Foi ao cair de uma tarde de janeiro de 1930, que deixei para sempre a terra de Brás Cubas pela terra dos tamoios: UBATUBA. Havia uma razão para isso: — meu marido, natural da Ilha Anchieta, sentia profundas saudades de seu torrão e mal se dava na trepidante Santos, porque a sua índole não se casava com o vertiginoso movimento do grande porto paulista. Eu também, filha de Ilhabela, esse paradisíaco rincão do litoral norte, ansiava poder sentir novamente ao meu derredor a misteriosa beleza rústica, e com sabor primitivo das praias, das nossas praias, até o advento do turismo que se assenhoreou de tudo, trazendo o progresso característico da época que atualmente vivemos, mas retirando aquela paz que era própria dos caiçaras simples e sem problemas. Casada apenas há dois anos, vivia somente para o meu marido, que era o pequeno mundo onde me agitava. Carregando os nossos poucos haveres para o convés da lancha "Ubatuba-Santos", línico elo que ligava as duas cidades periodicamente, enfrentei a nova fase de minha existência, desafiando, naquela inesquecível viagem, o mar revolto, bramindo a sua raiva como se desejasse impedir minha chegada à terra que se tornaria meu novo lar. Albino, meu marido, fortemente gripado, mal saía do lugar que escolhera. Eu, em contrapartida, em todos os portos da orla litorânea onde a lancha aproava, descia, vasculhava os arredores com meu olhar, fixando tipos e coisas em minha memória. Pouco se me dava o oceano bravio. Meu coração exultava pelas novidades, pelo encantamento da viagem. Dois dias passaram até chegarmos, bordejando a ilha natal de meu marido, adentrando o boqueirão e encostando na Praia da Enseada, onde transcorreriam os meus primeiros tempos de "ubatubense". Nessa longínqua tarde em que ali desembarcamos, o sol tendia a se esconder entre os montes. Sua luminosidade já levemente rósea, tingia a superfície das ondas de tonalidades belíssimas, cheias de nuanças, enchendo meus olhos e minha alma. Chamou-me à realidade das cousas, a voz de meu marido, que, impaciente pela cansativa viagem, não compreendia o meu entusiasmo pela praia a que acabávamos de aportar: — Como é, Idalina? Você desembarca ou não? Suspirei ao pensar quão errado fora o destino em ter me feito nascer mulher. Como invejei os homens nesse dia! Estava longe de adivinhar que, desde aquele instante até o momento presente, em que escrevo estas reminiscências do passado, teria que assumir uma personalidade masculina. Naquela noite memorável, fizemos camaradagem com milhões de pernilongos, indesejáveis visitantes que só sabem agradar mordendo. Conformei-me, comparando-os aos homens, destinados, na terra, a ferir os seus semelhantes. Porém,, rio dia seguinte tudo esqueci ante o grandioso espetáculo do nascer do sol. Inundava a serra e o mar, e era a sua luz, tão grande a manifestação de Deus na Natureza, que chorei! Logo depois, Albino veio ao meu encontro e ficou consternado ao me ver chorando: — Você está arrependida? — Não, querido! Estou chorando de alegria... — Impossível — disse êle, enquanto me levantava da areia molhada. — Você gosta daqui de verdade? — Sim, Albino! Adoro a vida simples, sem artifícios, onde cada ser humano recebe aquilo que Deus determinou! Aqui o homem é senhor e rei em seu lar! Tudo isto eu lhe disse, apontando o majestoso cenário que ambos contemplávamos naquele instante: — Veja, Albino, os pescadores como riem e cantam ao estenderem suas redes! Ajoelhando-nos na areia úmida, oramos, pedindo ao Pai Todo Poderoso forças suficientes para ganharmos o nosso pão de cada dia, agradecendo ao mesmo tempo, a dádiva de luz e beleza, com a qual fomos presenteados pela Divina Misericórdia naquela manhã de 3 de janeiro de 1930.


terça-feira, 28 de novembro de 2017

EM 1951... PELO AR

Arquivo Roteiro Turístico

               Aproveitando que um novo livro (Sobre o mar de Iperoig) está sendo lançado em Ubatuba, desta vez abordando a história da aviação na cidade, quero apresentar uma página, de 1951, do nosso primeiro roteiro turístico que se tem notícia:

               Ubatuba dista de São Paulo, em linha reta, 160 quilômetros. A viagem por via aérea é deslumbrante, principalmente para quem a faz pela primeira vez. Após a travessia do planalto e da crista da Serra do Mar, surge o oceano imenso, todo azul, com suas ilhas esparsas, as praias sinuosas, os costões batidos pela alva espuma, os esporões da serra, cobertos de densa mataria, mergulhando no mar, as várzeas sulcadas pelos rios que vão terminar quase sempre formando restingas, e os povoados de pescadores.
               Ubatuba dispõe de ótimo campo de pouso. Sua pista, de 1000 metros permite, se necessário, a aterrissagem dos grandes aviões da rota Rio de Janeiro – São Paulo. Como a cidade de Ubatuba fica exatamente a meio caminho da linha Rio - São Paulo, já existe funcionado um posto rádio telegráfico e, brevemente vão ser iniciadas as obras do futuro aeroporto.
               Diariamente ali pousam aviões de aeroclubes e de particulares, e a “VALPAR”, companhia paulista de aviação, com escritório em São Paulo, transporta passageiros para Ubatuba. Uma viagem pela “VALPAR”, que se utiliza de aviões “Stinson” para três passageiros, dura aproximadamente 50 minutos.
               Esse serviço regular de voo para Ubatuba, já está funcionando em caráter experimental, partindo aviões , às 9 horas e regressando no mesmo dia, às 14 horas.

               Também a “STAR”, companhia de táxi aéreo, de São Paulo, transporta passageiros para Ubatuba, cobrando pelo tempo de voo.

             A seguir, apresento parte do texto que fiz em 30 de abril de 2002, com Dona Silvia Pollaco Patural, esposa de Jean-Pierre, o autor da façanha abaixo, marcando uma contribuição à aviação em Ubatuba. De acordo com um dos autores do livro que está sendo lançado, ele será citado no relato.

Arquivo Patural



  O barco ajudava, mas mesmo assim, devido ao gênio de praticidade do meu marido, se fazia necessário outra alternativa de transporte que diminuísse a perda de tempo. Havia também, no caso do barco, uma dependência das condições do mar. Nesse ínterim já tínhamos construído a nossa primeira casa no Ubatumirim. Assim, Jean-Pierre resolveu adquirir um avião, ou melhor, encomendou as instruções de uma empresa francesa. Novamente o nosso quintal em Taubaté se transformou. Agora era um hangar. Logo estava pronta a fuselagem; as asas deram mais trabalho. Um serviço que mais me impressionou foi a confecção da hélice: dos pedaços de madeira marfim surgiram as pás com suas aerodinâmicas perfeitas. Depois de pronto ele saiu do nosso quintal seguindo o mesmo modo da retirada do barco.
  1. Dona Silvia (Arquivo Patural)
          
              Após aprovação do Centro Técnico Aeroespacial de São José dos Campos, Jean-Pierre tirou brevê de piloto no Campo de Marte, em São Paulo. Aí foi uma maravilha!!! A partir de Pindamonhangaba, pois em Taubaté não havia campo de aviação, levávamos trinta e oito minutos até alcançarmos a nossa área de pouso no Ubatumirim, que construímos na proximidade da nossa casa.  Na cabine havia espaço para duas pessoas; a Patrícia ia no colo.
       EM TEMPO : A história dos franceses (Jean-Pierre e dona Silvia) está no blog desde junho de 2011. Boa leitura.

domingo, 26 de novembro de 2017

GAVIÃO NO LIXO

Carcará na Cocanha (Arquivo JRS)

               O meu parente Mané Bento, nascido na praia da Fortaleza, conforme eu disse noutra ocasião, se pudesse ter estudado seria um advogado imbatível porque tinha as respostas na ponta da língua. “Com o Mané Bento é assim: bateu levou”, dizia a minha saudosa mãe. Ah! Ele também era muito ardiloso! Vovô Armiro, costumeiramente bronqueado com ele, dizia: “É mais sagaz do que trabalhador esse primo”.
               As respostas desse meu parente eram lógicas, inteligentes e imediatas. Mas isto não é muito comum até hoje! Afirmo isto porque, dias atrás, um jovem motorista desatento – ou fazendo pouco caso do alheio, não sei – estragou alguns blocos que se encontravam empilhados numa calçada, numa rua próxima de onde moro. Bateu com o caminhão numa manobra imprudente. O morador, proprietário dos blocos, saiu na hora reclamando, querendo resolver o prejuízo que era evidente. O motorista, bem jovem, se mostrou insensato e sem nenhuma educação de berço: “Eu não vou pagar nada. Quem mandou você deixar os blocos na calçada?”. Aí, na maior tranquilidade, o proprietário pegou o telefone e chamou a polícia. Fotografou tudo de diversos ângulos. Enquanto esperava disse: “Quer dizer que se o meu filho estivesse na calçada você poderia matar o menino que estava certo, com a razão? E saiba de uma coisa: você pra mim é moleque, entendeu?”. E continuou debulhando um rosário de argumentos que me fez recordar do meu finado parente, primo da vovó Eugênia.

               Eu fui andando sem esperar pra ver a solução do caso. Mas pensei: “Outro Mané Bento, com tudo na ponta da língua, corrigindo gavião que se acostumou em revirar lixo”.

sábado, 25 de novembro de 2017

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

ANTONIO GOMIDE


Obras de Antonio Gomide (Arquivo Roberto Zsoldos)

            O artista modernista, na segunda metade do século passado escolheu Ubatuba para se inspirar, produzir seus últimos trabalhos e viver seus últimos dias.
            De acordo com a pesquisadora Lisbeth Rebollo Gonçalves, “o modernismo, como movimento de modernização da sociedade, é essencialmente urbano e reflete a consciência histórica dos novos tempos: as tecnologias inventadas pelo homem laicizam as dimensões da arte”. Era o começo do século XX.
            “Para o Brasil, no campo das artes, o acesso a essas linguagens [expressionismo, fauvismo, dadaísmo...] significa o compasso desejado para a contemporaneidade, espelha a vontade de modernização social, a sua esperança; provoca a metamorfose do gosto e, neste quadro mundial, a necessária reinterpretação da cultura brasileira. (...) A história da nossa arte se constrói, em parte, com uma ação organizada de grupos intelectuais e, de outro lado, com a participação de personalidades independentes, cuja produção artística abarca o presente, fundamentando o futuro". Antonio Gomide pertence a esta geração [da Semana de Arte Moderna – 1922].

            Antonio Gonçalves Gomide nasceu em Itapetininga (SP), em 1895. Provavelmente, o encontro com a cultura caiçara, com as belezas inspiradoras de Ubatuba, ocorreu entre 1934 e 1937, enquanto viajava pelo interior do estado de São Paulo, colaborando com o levantamento das igrejas do século XVII para o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Esse importante artista, depois de ter vivido na Suiça e em Paris, em 1964 muda-se para Ubatuba. Dois anos depois fica cego. No dia 31 de agosto de 1967 faleceu em nossa cidade, bem perto do mar e de tudo que tanto amou nos últimos anos.


            Não seria interessante a nossa cidade (Ubatuba) homenagear Antonio Gomide no cinquentenário de sua morte, promovendo algum evento para que mais gente venha apreciar seus trabalhos e sentir orgulho por estar no ambiente que o acolheu em sua última fase da vida?

terça-feira, 21 de novembro de 2017

CANSADO DA VIDA

Por que fugir de tantas belezas? (Arquivo JRS)

               Conforme eu já escrevi, muitos dos caiçaras, sobretudo os que nasceram sob influência do turismo, traíram seu espírito original, foram corrompidos pelo lema: “vida fácil  é que vale a pena”. Assim foi com o “Menino”. "Não entre nas drogas. Não fuja das belezas que estão ao nosso redor. Faça bom uso da sua vida" , aconselhava o meu padrinho Tobias aos filhos de tantos que por ali zanzavam meio que perdidos. 

               “Menino”, filho do Chico Caçapa, logo cedo se tronou um viciado em um monte de porcarias. De vez em quando realizava algum trabalho que lhe rendia alguns trocados. De tanto infernizar o pai, conseguiu a sua motocicleta, dessas “cabritas” que vivem se esquivando das batidas policiais. Numa dessas fugas, o “Menino” bateu no poste na beira da estrada e morreu. Era 22:30 horas, de uma noite tranquila de primavera. O céu estava estrelado, mas algumas nuvens se mostravam como tempo virando para o final de semana. Ainda bem que, no meio do caminho, o imprudente motociclista deixou a garota que o acompanhava. É ela quem nos conta o contexto do trágico fato:


               “Eu e ‘Menino’ tínhamos um caso há meses. Era o meu namorado. Naquela noite nós vínhamos do bairro vizinho, onde havia um produto novo com uns caras, gente nossa. Na pista, hesitamos em entrar pelo outro caminho de casa, retornamos à pista. Atrás de nós vinha um carro, na mesma velocidade que nós. Uma buzinada nos alertou, evitando assim um acidente logo ali, onde, provavelmente eu também teria chegado ao fim. O carro passou por nós. ‘Menino’ acelerou bravo por ter sido ultrapassado e porque estava com a cabeça cheia. Logo depois da ponte, ao ultrapassar o dito carro, ele chutou o retrovisor,  xingando muito o motorista. Eu ralhava, mas ele continuava na loucura. Não vimos o condutor porque o vidro era escurecido. Para despistar, logo entramos na primeira saída asfaltada. A intenção era retornar ao Largo para mais um rolê, tomar uma cervejinha e escutar um sonzinho antes de ir para casa dormir. Estávamos voltando quando avistamos o tal carro entre os policiais. Ali eu desci enquanto o meu parceiro fugia a toda velocidade. Vi em seguida as viaturas saindo, na mesma direção, no rumo que o ‘Menino’ tomou. Fiquei nervosa. Trinta minutos depois, estando em casa, sem conseguir notícia alguma com os mais chegados, recebi a mensagem de uma amiga: ‘Menino morreu. Bateu num poste. Estava correndo demais. Sinto muito’. Eu também senti muito; ele não era uma pessoa ruim. Só que estava cansado da vida”.
     

VIVER NAS ILHAS

Cotidiano de um ilhéu (Foto de Lucas Lima)


               Eu nasci num tempo onde os laços entre os ilhéus e os caiçaras de terra, em Ubatuba,  eram bem fortes. O primo Eugênio, nativo da ilha do Mar Virado,  narrava a vida que levava na ilha da Vitória, tio Nelson e tio Salvador descreviam suas idas e vindas regulares para dar atendimento aos ilhéus, Pedro Cabral, em seu armazém, no Perequê-mirim, era uma referência aos “vitoreiros”, Pedro e Vera, durante seis anos, viveram ministrando suas aulas na ilha dos Búzios. Ambas (Vitória e Búzios) fazem parte do arquipélago de Ilhabela. Em outros textos eu já descrevi mais detalhadamente outras situações  desses caiçaras que se adaptaram às ilhas mais próximas de nós. Tem até a história do russo que por lá foi acolhido há muito tempo, sem que ninguém saiba ao certo qual foi o roteiro que o trouxe de tão longe para se acaiçarar na ilha da Vitória. Hoje vou reproduzir uma parte de um texto que encontrei na revista Veja São Paulo, de 05/02/2014, texto de Angela Pinho e fotos de Lucas Lima.

               Para ensinar história, o cenário ideal poderia ser Búzios ou Vitória, a 28 e 40 quilômetros de Ilhabela, respectivamente. Ao chegar, o visitante tem de chamar algum morador para buscá-lo em uma canoa a remo. É a única embarcação que consegue atracar no “porto”: uma fileira de tábuas de madeira em cima das pedras. Há nas duas ilhas resquícios de antigos cemitérios indígenas datados da pré-história. Os atuais moradores misturam traços desses primeiros habitantes com os de europeus, mas nunca se soube direito como os estrangeiros foram parar no local. Um trabalho da arqueóloga Cíntia Bendalozzi pode ajudar a esclarecer o mistério. No fim do ano passado, ela encontrou um documento que mostra a doação de Búzios, no século XIX, para um filho de portugueses. Nos próximos meses, a especialista fará expedições para se aprofundar na investigação. “Há relatos de caiçaras sobre a presença de grande volume de louça em meio a ruínas de pedra e cal”, afirma Cíntia.
               Ali, os moradores plantam o que come em roças e criam galinhas. Em Búzios, há dois mercadinhos, onde se compra de macarrão a bebida. Uma garrafa de Velho Barreiro custa 11 reais, quase o dobro do que em Ilhabela. A inflação da cachaça não incomoda, pois o consumo caiu desde a chegada da igreja evangélica Congregação Cristão no Brasil, há mais de uma década. “Todo junho tinha festa com forró e quentão. Agora a maioria é crente”, afirma o pescador Olegário Costa, um dos poucos que não se converteram.
               Como não há posto de saúde nesses lugares, a cada trinta ou quarenta dias, uma equipe da prefeitura de Ilhabela aparece por lá com médico, enfermeiros, dentista e psicólogo. As mulheres costumam ter filhos no continente, principalmente desde que uma das moradoras de Búzios morreu no parto, em 1980. “Ela tentou ir para o hospital na última hora, mas o mar não deixou”, lembra Benedita Costa, de 51 anos. “A criança sobreviveu, ela não”. A mãe de Benedita também passou por um aperto há quinze anos, quando levou uma picada de cobra. Acabou salva com ajuda de um helicóptero da Marinha.

               Que tal visitar a minha publicação de 17/03/2011 (A vitória foi dos peitos)?