sábado, 30 de agosto de 2014

OS TRILHOS DO BITO BAGRE

         
Canoas em Iperoig. (Arquivo Júlio Mendes)

         Um período da minha vida eu vivi na Praia da Fortaleza, a terra da mamãe. A nossa casa era logo depois de um bananal, ao lado de um mandiocal, no morro do Vovô Armiro. A água que usávamos era de um poço, num bananal na grota, logo ali na porta da cozinha. Naquele tempo ainda não tínhamos acesso à tecnologia dos canos. A água corrente mais próxima era longe, estava no bananal da Tia Martinha, mas não oferecia tanta declividade. Tinha de ser uma bica, uma calha de bambu que passasse rente ao chão. Papai não fez isto. Achou mais fácil caprichar num poço todo de tijolos. Trabalhoso era subir até a nossa casa com vasilhas cheias de água. Eu já contei que era lá, desse lugar, à sombra de uma aroeira, que tínhamos a mais bela visão da Baía da Fortaleza?

         No jundu dessa praia eu escutei boas histórias, causos da caiçarada e dos meus parentes. Havia sempre boas gargalhadas de todos nas prosas de serão. O Bito Crode, também chamado de Bito Bagre, filho da Tia Martinha e do Tio Cláudio Mesquita, era o campeão nos causos. Ou entrava como narrador ou entrava como protagonista nos casos de outros. Agora, tendo me encontrado com a sua neta Daniele, filha do Mané, me recordei deste:

         O Bito Bagre sempre ia pescar na Ponta da Fortaleza. Era costume pegar a sua canoinha, nomeada de Goetinho, fundear entre a Lage de Fora e a Ponta e largar a linhada. De vez em quando ele fazia uma boa pescaria, mas muitas vezes desembarcava no lagamar só com alguns peixinhos dentro do balaio.            Faz parte do ritual caiçara, assim que uma embarcação embica na praia, sempre chegar alguém para ajudar a puxá-la (nos rolos, para cima do jundu, onde fica o rancho). De longe ele grita: “E aí, pegou alguma coisa?”. Quando a pescaria tinha sido boa, o Bito Bagre sorria e apontava o balaio no fundo da canoa. Caso não sorrisse e apenas dissesse “nada, só uma miuçalha”, podia se preparar que vinha um causo. Quase sempre era deste tipo: “Pesquei bastante, dei sorte. Também, né?, as águas viraram pra sul só na hora do almoço. O que tá no balaio é o resto. Só que era muita coisa mesmo! A maioria era pescada amarela. Até dois robalos grandes eu puxei pra bordo. Na hora, lá mesmo eu decidi: remei até no Lázaro e vendi para o Peres”. Ou seja, o experiente pescador nunca saía em desvantagem.

         “Numa ocasião...” – contou o Zezinho Rozeno – “...um navio inglês naufragou no largo, quase chegando na Ilhabela. Levava, entre outras coisas, uma grande carga de trilhos para a construção de ferrovias na Argentina. Aquele era o assunto da semana”. E naquela semana, tendo chegado de uma fraca pescaria, o Bito Crode fez esta variação: “Hoje eu não pesquei nada, mas foi o meu dia  de sorte! Um monte de trilhos estava boiando perto do Saquinho do Zacarias. Juntei eles e levei até a Venda do João Zacarias. Ele vai deve negociar aquilo tudo e depois dará a minha parte. Acho que vai dar um bom dinheiro”. Imediatamente alguém retrucou: “Mas trilho não afunda, Bito Crode?”. A resposta imediata do filho da Tia Martinha foi: “Afunda sim, mas eu fui ligeiro e recolhi antes tudo o que pude”.

         Ah! O Bito Bagre! Quanta saudade desse contador de causos!!! Abraços aos seus descendentes!

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

TEM GALO... E TEM GALO!

 
Dois galos e uma ninhada (Arquivo JRS)

          O finado Tio Clemente, torcedor fanático do Santos Futebol Clube, foi quem continuou morando na casa do Nhonhô Armiro, na Praia da Fortaleza. Depois da morte deste, sempre a sobrinhada passava para uma prosa, combinar alguma coisa ou simplesmente ficar na sua aconchegante cozinha escutando, nas tardes de domingo, uma partida de futebol nas ondas sonoras captadas por um fio de arame esticado ao longo da cumeeira. No final, um café era sagrado como despedida do fim de semana.
          No quintal do querido Tio Clemente sempre teve galinhas e patos. "É a minha criação". Numa ocasião, a Tia Maria fez o seguinte comentário: “Tio Clê, preste atenção naquele galo novo. Não está parecendo que, em vez de namorar as franguinhas, ele se oferece para o galo velho, aquele carijó?”. De pronto o tio respondeu: “Você sabe que eu já botei reparo nisso?! Será um galo bichado? Sabe que tem duas marrecas que também se comportam assim, como 'fememacho'? Tá vendo ali, debaixo da laranjeira? São as duas que estão de namoro”. E seguida ele nos contou o seguinte: “O velho Migué Mateus, lá do Corcovado, numa ocasião contou aqui em casa, quando o meu pai ainda era vivo, que o Antonio da Cruz, morador lá do Rio Escuro, quase no Sertão das Cotias, perto da Tia Estelita, distante mais de cinco quilômetros de sua casa, tinha um burro que, em época de Lua Cheia, chegava a arrebentar cerca de arame para fugir e ir namorar um cavalo dele, do Migué Mateus. Imagine um burro ir lá do Rio Escuro até o Corcovado e ficar se oferecendo para o cavalo?!?”. E completou: “Isso é o fim dos tempos. Os mais antigos diziam que quando essas coisas acontecessem seria o fim do mundo. Cruz-credo!”.
          Muita coisa se foi... Os tempos agora são outros. Pelas ruas mais próximas vejo homem com homem e mulher com mulher se beijando, se acariciando à vontade. Imagino se o titio estivesse vivendo nesta época, ele repararia muito. E faria os seus comentários!!! E entre os animais também não é diferente; as coisas estão assim, nessa “pouca vergonha” como dizia o Mané Bento. Digo isso apenas para relatar um fato: na semana passada, estando no quintal do Caetano, o Pinhé me chamou para olhar uma curiosidade. Tratava-se de um ninho dentro de uma caixa, com uma galinha chocando ovos. Ao lado, um galo garnisé, de um branco encardido, fazia vigília à companheira chocadeira. De repente... Peraí! Não é uma galinha! “É isso mesmo, Zé! É outro galo garnisé! Você já viu isso? É um galo chocando os ovos com o outro galo tomando conta. Deve ser influência da nossa modernidade humana”. É mole?!? Nisso chegou o Velho Caetano: “É, Zé! Tem galo...e tem galo! Esses dois se namoram faz tempo. Um outro que batia neles virou um cozido no último domingo. Será que eles aprendem isso com a gente? Só sei dizer que tá a maior putaria no meu terreiro. Fazer o quê?”.

          Calma, Caetano. São as transformações do mundo, tal como as mudanças no ser caiçara!

domingo, 24 de agosto de 2014

EDUCAR É...

Canoas no painel  (Arquivo JRS)
A aula do Higino (Arquivo JRS)

         Na escola estadual do Perequê-mirim, cujo nome homenageia a querida professora Flora (Florentina), o tema deste ano (2014) é a cultura caiçara. Sábado, 23/8, na parte da manhã, mais uma etapa foi apresentada à comunidade.
          A programação iniciou com o Ezequiel, do Sertão da Quina, contando uma história que ele resgatou da tradição oral, lá no seu bairro. Em outra ocasião eu entrarei em detalhes do que se perpetuou a respeito do Anjo Mau, um lugar da Serra do Mar.
Em seguida,  Seo Higino, criador de mexilhão da Barra Seca, juntamente com o Élder Giraud, da Enseada, dando uma aula de como acontece os primeiros passos dessa atividade, destacou a importância dos alunos e da escola em promover esse tipo de aula, essa forma de educar. Afinal, além de fonte alimentar e econômica, o marisco (mexilhão) também contribui para a saúde do mar. “Comer marisco sempre fez parte da nossa cultura”.
Prosseguindo as apresentações, veio um grupo de alunos, animado pela professora Célia, narrando e cantando a Lenda do Boi de Conchas. Depois, enquanto na cozinha o  lambe-lambe (arroz com marisco) entrava na reta final de preparo, ainda houve tempo para apreciar a exposição dos trabalhos referentes ao tema, conversar com os pais e assistir a uma partida de futebol na quadra.

Finalizando, saboreamos o delicioso almoço, conversamos e rimos bastante. Coisa boa! Saldo muito positivo!  Viva todo o pessoal que nos deu mais um exemplo de educação contextualizada! "Enquanto os políticos e alguns níveis da hierarquia educacional exercem a demagogia, nós avançamos na pedagogia, vamos fazendo caminhos (métodos)".  São momentos assim, repletos de pessoas especiais, que me recorda a frase do Wladimir Ghika: "A perfeição moral consiste em fazermos sob a inspiração do amor o que faríamos por exigência do dever". Por enquanto é só. Agora vou continuar embalado pelo canto do sabiá-laranjeira no pé de carambola do meu quintal. Bom dia mesmo!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

FOLCLORE DE UBATUBA


Gaiola só para enfeitar.  (Arquivo JRS)

        Em 1965, o Congresso Nacional Brasileiro oficializou o dia 22 de agosto como o Dia do Folclore. Então, essa é a data destinada à comemoração do nosso folclore.
    Folk: povo + Lore: saber. Portanto, folclore é a cultura do povo; a criatividade a partir da necessidade de resistir, de produzir e de festejar.

        Em 1975, Paulo Florençano, o grande admirador de Ubatuba escreveu:

    “Em 1934, quando para lá fui pela primeira vez, Ubatuba ainda muito conservava seus vínculos estreitos com o seu importante passado: a arquitetura da cidade era, predominantemente, aquela mesma que viera de seu período dourado; também certos usos e costumes do seu povo chamavam a atenção. No palavreado, algumas palavras desaparecidas em muitos lugares, nessa cidade eram comuns: emaciado (magro), embaído (enganado), gesta (história), acudir (acorrer, comparecer). Assim entendi a frase pregada numa folha de papel na porta da casa comercial: ‘Acudam ao armazém do seu Quintino – já se vende pinga!’.

       As festas tradicionais, quer as da igreja, quer as profanas, revestiam-se de cunho particular, constituindo riquíssimo folclore, pois pareciam guardar o sabor especial e o singelo encanto das origens: a do ‘Divino Espírito Santo’ com a sua alegre Folia; a da ‘Santa Cruz’, orago da cidade, conservando cânticos do tempo dos jesuítas, como o lindo ‘O Rosário de Maria’; a ‘Procissão Marítima’ dedicada a São Pedro, patrono dos pescadores; a de ‘Santa Rita da Enseada’; os carnavais animadíssimos, com o grupo do ‘Boizinho’ representando excertos de velho auto seiscentista; as danças de ‘São Gonçalo’, ‘Fandango’, ‘Xiba’ e tantas outras”.

       Viva a nossa cultura popular!

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

CULTURA URGENTE!


Praça da Matriz (Arquivo Júlio Mendes)

                    O amigo Júlio, grande divulgador da nossa cultura caiçara, participante do Grupo CANTAMAR, clama por revitalização da nossa Ubatuba. Nesta Semana do Folclore, outros aspectos devem ser acrescentados como reflexão e ação urgente.


“A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores e o mesmo jardim. Tudo é igual, mas estou triste, porque não tenho você perto de mim”

       Quem não se lembra ou não ouviu: A Praça, de Ronnie Von?
      Se fosse parafrasear a letra do compositor, eu não diria o mesmo da nossa Praça Exaltação da Santa Cruz, mas estou triste, pois a nossa praça, há tempo, não é mais a mesma.
      Iniciei essa crônica exatamente às dez horas da noite do domingo passado; às 21h40 tirei a foto da imagem acima. O que me fez tirar essa foto foi a lembrança de tempos de criança e de adolescente em que, num domingo como hoje e neste mesmo horário, a praça estava festiva, repleta de gente; fiéis que após a missa e outros que do cinema saiam, ali ficavam para curtir o resto da noite; no coreto, a Banda do saudoso maestro Pedrinho com seus maravilhosos músicos enchiam o ar de canções que alegravam os corações. Pipoqueiros diversos, algodão-doce, amendoim torrado, cocadas, balões; crianças saltitantes com as mais diversas brincadeiras... Eu estava no meio daquela “apoteose”.
Infelizmente hoje está diferente, conseguiram também acabar com o que tínhamos de mais singelo, festivo, ingênuo, aconchegante, carinhoso, romântico... A nossa Praça da Matriz, além de feia, está sem vida, triste, morta. Da missa os fiéis vão para suas casas, o tal teatro, fantasmagoricamente permanece fechado e escuro, uma amendoeira seca dá um ar amedrontador, o físico arquitetônico da praça está em ruínas.
      Como diz a letra da música de Zezé Di Camargo (Meu País): “Feito um trem desgovernado, Quem trabalha tá ferrado, Nas mãos de quem só engana, Feito mal que não tem cura, Estão levando à loucura, O país que a gente ama...”
      Parafraseando, agora eu digo: “Feito mal que não tem cura, estão levando à loucura, Ubatuba que a gente ama”.
    Aí eu pergunto: Cadê a Banda para musicalizar e tornar a praça de novo atraente, festiva, alegre, romântica, amorosa; cadê o teatro para promover conhecimento e cultura, fazer movimento; cadê os artistas de rua para encenarem uma peça aos pés do obelisco, cadê os caiçaras com seus folclores fandangueiros, cadê o grupo CANTAMAR para mostra a música raiz de nossa terra e encenar o auto do Boi de Conchas... Cadê? Cadê?
      Essas perguntas, que não são só minhas e que na verdade não são de hoje, mas oportunamente agora, eu faço à dona FundArt. Essas perguntas eu faço ao secretário municipal de Turismo. Essas perguntas eu faço ao senhor prefeito. Essas perguntas eu faço aos senhores vereadores.
     Caras, desencostem! Façam valer os altos salários que nós lhes proporcionamos!
    Caras, a cidade, em todos os sentidos, está triste pela inércia de vocês!
  Se nessa terra tá cheio de artistas, atores, dançarinos, contadores de causos, poetas, músicos, instrumentistas... O que é que há Ubatuba? O que é que há?
      Eu sei o que é que há! Eu sei o que é que há!
    Valorizem os artistas da terra, pois, com certeza, são esses que alavancarão a politiqueira, embora “política”, a que vocês dizem fazer.
     Mudamos de “Dudu” para “Mamô”, pra ver se algo acontecia, mas tanto com “Dudu”, tanto com “Mamô”, o marasmo se instalou e o marasmo continua.
    Perdoem o meu desabafo, mas eu repito: O que é que há Ubatuba? O que é que há?

Fonte: O Guaruçá

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

QUE PESCARIA!


Pescaria na Enseada (Arquivo Peter Németh)

         O bisavô do Zezinho Rozeno, como bom caiçara, era trabalhador da roça, mas pescava muito, sobretudo na costeira. As garoupas sempre foram as preferidas desse povo. “Não faltava escaldado em nenhum dia!”.

         Numa tarde, logo depois do almoço, pegou um bonito já apodrecido, a sua vara de pesca preferida e se dirigiu para a Ponta do Bonete. Porém, aquela tarde não prometia nada. O serão já chegava. Nenhuma fisgada; nem de comidio. Por fim, depois de amassar a cabeça do bonito com uma pedra, amarrou-a bem no anzol e lançou no pesqueiro de sempre. Era a última tentativa; tinha acabado a isca.

         Percebendo uma pegada de leve, o Velho Rozeno deu um safanão na vara, caindo o anzol numa moita de caraguatá no embiruçu que ficava logo acima, no morro. Sentindo o peso da linha, fez força e o anzol com algo grudado caiu novamente na água. Aí uma garoupa das grandes abocanhou a trouxa de isca. “Fez das tripas ao coração” para tirar aquele peixe da água. Devia ter quase trinta quilos.

         Ao chegar em sua casa, a mulher ficou toda contente e foi logo para o rio consertar o peixe. Ainda dava tempo de preparar para o jantar. E aí veio a surpresa: ao abrir a garoupa encontrou uma raposa. Em seguida, ao cortar a barriga da raposa, encontrou um imenso guaiá.

         Isso é que é pescaria! Nunca um mesmo anzol rendeu tudo isso!

Em tempo: o velho Zacarias da Ponta dizia assim: "Essa gente dos Rozeno é descendente de francês. Os mais velhos diziam que o primeiro Rosand foi deixado pelo pirata Bonett. Só não dei dizer se também era pirata".

domingo, 17 de agosto de 2014

SEMENTE DO AMANHÃ

                 
        Hoje eu acordei pensando em tantas pessoas que deixaram registradas algumas palavras a respeito da nossa cidade de Ubatuba. Por tantos nomes estão: Fátima, Júlio, Góis, Terezinha, Eliana, Neiva, Ezequiel e tanto outras pessoas queridas. Entre estas faz falta a Fernanda Liberal e a sua ânsia de amar. 
          O presente texto é do Celso, genro da saudosa Fernanda, uma paulistana que adotou a vida rente ao mar, cujo blog (http://www.letrasdocelso.blogspot.com.br/) é inspirador em temas bem sérios, mas tratados com uma suavidade sem igual.

     Gera preocupação o futuro dos jovens ubatubenses. Afinal, quais as perspectivas de trabalho que têm?

         O comércio local, a hotelaria, os prestadores de serviços, absorvem uma pequena parte desta demanda. Várias famílias, também, conseguem criar condições para que seus filhos consolidem suas atividades profissionais em cidades mais promissoras.  A questão principal é que a maioria da juventude não dispõe desta retaguarda.

    Voltando à nossa iniciativa privada, pergunto, ela é pujante?

        Alguns segmentos, sem dúvida, estão consolidados. Mas, novamente, reflito sobre a maioria. Geralmente, são pequenas empresas com limitado poder de investimento e que resistem a contratações.  Sabem dos riscos que a legislação trabalhista embute.

        E os serviços públicos?    Geram empregos, através de concursos ou acordos políticos. Não proporcionam, porém, uma diversidade de possibilidades profissionais.

       Uma saída para este cenário nebuloso seria oferecer aos nossos jovens uma excelente formação nos ensinos fundamental, médio e técnico. Esta base educacional representaria a possibilidade de evolução, afinal, pelo país afora, há vagas no mercado de trabalho para gente preparada. Sem falar na possibilidade de uma carreira acadêmica, disputando vagas nas melhores universidades.

     Há diversos programas que oferecem bolsas de estudos integrais para os menos favorecidos. É necessário, porém, ter uma boa formação para conquistá-las.

      Pois é, meus amigos...
      No melhor cenário, garantir capacitação de alto nível para nossos jovens poderia, finalmente, atrair empreendedores para o município. Eles teriam a certeza de encontrar por aqui mão de obra qualificada.

     O tempo passa e a velha e boa fórmula para uma vida mais promissora ainda é pouco aplicada.

     Educação de qualidade é a saída para a estagnação. Janela magnífica para o progresso e a liberdade.

Publicado no Blog Ubatuba Víbora
Coluna do Celsinho
8 de agosto de 2014

sábado, 16 de agosto de 2014

GUISARD EM UBATUBA

Caiçaras no Porto do Sobrado
Acesso ao Perequê-açu.

A historiadora Cláudia Martins, na sua sucinta biografia a respeito de Félix Guisard, o neto de franceses considerado por Monteiro Lobato como o segundo fundador de Taubaté, hoje nos relata de quando o empresário decide conviver mais com a cidade de Ubatuba.

“Em 1933, as festas da família ganharam mais um lugar. É que Félix Guisard adquiriu um casarão em Ubatuba, chamado Sobradão do Porto. O imóvel fora construído por Manoel Baltazar da Cunha Fortes, comerciante português que depois o vendeu a Julius Kerstz, húngaro que fez dele o Hotel e Restaurante Budapest e que, por sua vez, o vendeu a Guisard. O prédio foi todo construído com material  vindo de Portugal. Até as batentes de pedra vieram como lastro de navio. Félix Guisard fez questão de preservar cada canto da casa, consciente do seu valor artístico.
          Além do sobrado, Guisard comprou também algumas terras e um pedaço da praia do Perequê-açu. A cidade, ainda pouco habitada e também pouco visitada por turistas, oferecia um mar de paz e tranquilidade depois do estressante trabalho da fábrica [em Taubaté]. Porém, o problema estava em chegar até Ubatuba. A estrada era interminável, cheia de buracos e, quando chovia, o carro atolava na lama e não havia quem o fizesse andar. Era preciso procurar a fazenda mais próxima e emprestar uma junta de bois para arrancar o carro do atoleiro. E a viagem pela Serra do Mar durava boas horas”.

          Maria Cecília, a neta de Guisard, assim expressou  o prazer de ir para Ubatuba:

          “A primeira vez que fui lá, em 1934, eu estava com 13 anos de idade. Ao chegarmos ao alto da serra, o mar nos aparecia com o azul do céu refletido, formando um todo de  beleza incrível, fazendo-nos esquecer todo o cansaço da viagem”.

          Naquele tempo, “o casarão era muito agradável, havia muitos quartos e o local era bastante arejado. Ubatuba era iluminada à noite por lâmpadas muito fracas, mas ninguém andava pelas ruas depois que escurecia. A família Guisard acordava cedo e ia a pé à Praia do Perequê. Eram os únicos turistas”.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

QUE GUISADO?

Avião do Jean-Pierre Patural no Ubatumirim - 1960 (Arquivo Patrícia Patural)


O caiçara sempre foi de pilheriar, de brincar. “Gosta muito de tirar sarro”. Quase sempre tudo acaba em risadas. O título deste, por exemplo, vem de um embaraçamento provocado pelo Valdemar “Sabiá”, nos idos de 1970, ao escutar o professor Osmildo citando o empresário Félix Guisard: “O senhor disse guisado, professor? Que guisado?”. Todos riram, mas a resposta do mestre foi um cascudo no cocuruto do engraçadinho. Estávamos no quarto ano primário.  Agora, depois de quarenta anos do ocorrido, lendo o livro de Cláudia Martins, com o título de Félix Guisard – a trajetória de um pioneiro, achei este importante complemento:

       “O sobrenome Guisard, herdado do pai, não tem um significado próprio, é o plural de ‘Guise’, uma liga católica formada na França durante os Reinados de Henrique III e Henrique IV, no século XVI”. Acho que está respondido ao “que guisado?”.

       O Félix Guisard, último proprietário do “Casarão da Fundart”, era neto de franceses. Seu avô, Félix Louis, em 1855 veio tentar a vida no Brasil, um país que oferecia chances de enriquecimento, sem guerras. Em 1861 este francês estava se casando em Teófilo Otoni, com uma jovem francesa. E foi perseguindo as melhores chances que essa família foi se aproximando da nossa terra caiçara. Já era Minas vindo para São Paulo!
       Para resumir o espírito empreendedor dos Guisard, sob sua influência direta, em 1927 foi fundada a Companhia Industrial de Taubaté (CTI). “Dinheiro atrai dinheiro”, francês atrai francês. Assim, sendo proprietário do Sobrado do Porto em Ubatuba, Guisard Filho nos apresentou a Família Patural. Era a metade do século XX; as pessoas sabiam enxergar o potencial da nossa cidade!
       Assim está na entrevista que há anos eu fiz com a saudosa Silvia Patural:

        “Através de um convite de uma família muito amiga -os Guisard - viemos, em 1953, conhecer Ubatuba. Eles eram os donos do Casarão, onde está atualmente a sede da Fundart. Foi em uma de suas casinhas, atrás do Casarão, que nós ficamos hospedados. Meu marido - Jean-Pierre - se entusiasmou pela cidade.  É preciso lembrar que ele adorava o mar; era um velejador em nossa terra natal. Ainda temos a foto de seu primeiro veleiro na região do Canal da Mancha, Bretanha, norte da França. Logo se empolgou em investir aqui.
             Em 1954 nós partimos à procura de um lugar que, além de agradável, oferecesse as condições propícias de cultivo e de instalações. Meu marido era um empreendedor. O lado sul do município logo ficou fora de cogitação. Motivo: a abertura da rodovia Ubatuba-Caraguatatuba estava sendo concluída, fazendo com que os preços das terras daquele lado encarecessem muito. Então nos falaram do lado norte, das vastas áreas e de outras vantagens”.

            Ai, meu Deus! Que guisado!!!

terça-feira, 12 de agosto de 2014

ZÉ PRETINHO

Praia do Perequê-mirim ao clarear do dia (Arquivo JRS)

       Olá, Thais Taniguti! O blog te acolhe!

      Pelas ruas do Perequê-mirim, há muito tempo, passaram personagens singulares, os primeiros migrantes na busca de melhores condições de trabalho: alguns eram mansos, pacatos cidadãos (Caninha, Nolasco, Gentil...); outros viviam brigando, sobretudo quando exageravam na “mardita água que passarinho não bebe” (Tadeu, Dito Preto...); tinha aqueles que eram craques no futebol (Bicudo, Zé Canela, Hélio...) e muitos outros que passavam despercebidos (Dito Santo, Chico Simão, Otacílio Preto...).

        Passeando pelas ruas da minha infância nesse bairro, ao ver a placa Severino Moryne indicando a antiga Rua J, lembrei-me do Seo Pascoal e de seus familiares, sobretudo da Dona Zelma e do Seo Aroldo. Eram paulistanos que se davam muito bem com os caiçaras. A casa de veraneio deles era ali, no areal, entre as terras do Seo Rodolfo Cabral e a da Dona Margarida. Bem defronte tinha cajueiros e uma jabuticabeira, onde mais tarde o Cláudio “Preto” fazia seus trabalhos, consertava carros. Este era filho do Seo Zé Pretinho (ou Iêieca). Moravam no Morro do Angelino (ou da Mariazinha).

     “O Zé Pretinho mandou dizer que o Iêieca não vem trabalhar hoje. Ele foi na Enseada catar sapinhauá”. É isso! O Seo Zé Pretinho atendia pelos dois nomes. E brincava muito com isso!
      “Tudo bem, Zezinho? Você viu o Zé Pretinho por aí? Se encontrar com ele, avise que o Iêieca foi trabalhar na obra do Valentim, do Xarazinho, atrás do depósito Itajá”. Era comum, ao ser cumprimentado, ele dizer essas frases para provocar risos em nós. Para encurtar o assunto, ainda na minha adolescência, o Zé Pretinho voltou para a sua cidade natal (Poços de Caldas), em Minas Gerais. Só os dois filhos mais velhos continuaram no bairro: Cláudio e Cleide.

      Uma mulher que eu muito admirava era a Dona Gustinha, casada com o Seo Zé “Barrigudo”. Que santa! Cuidava da filharada, trabalhava pra fora e ainda aturava o marido que sempre se “desequilibrava na branquinha”. Lembro-me de um apelido dado a ele pelo Miguel Cabral: “Nó Cego”. O apelido era por causa de que o Seo Zé vivia enrolando as pessoas, deixava trabalhos pela metade, fazendo do jeito dele etc. Porém, todos tinham paciência (ou dó?). Naquele tempo era assim. Havia muita tolerância, todos se conheciam. 

           Estando me referindo à Dona Gustinha, a minha esposa apartou: “Eu a conheci bem! Foi uma ótima cozinheira! Trabalhava na escola Florentina. Era muito carinhosa com a gente”. Agora, abraços aos seus descendentes.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

LUNDU DO SABÁ

                    
Contações do Velho Louzada (Arquivo Camaroeiro)
         Olá, Samuel Félix! Que bom tê-lo como seguidor do blog!

            Ao ler o livro Longe da árvore, de Andrew Solomon, destaquei:

         “O mundo seria melhor com mais culturas? Acredito que sim. Da mesma forma que lamentamos a perda de espécies e tememos que a redução da biodiversidade possa causar efeitos catastróficos no planeta, também devemos temer a perda de culturas, porque a diversidade de pensamento, de linguagem e de opinião faz parte daquilo que torna o mundo vibrante. Estima-se que até o final deste século [XXI], metade das seis mil línguas atualmente faladas na Terra terá desaparecido. Com essas línguas, vão-se muitos modos de vida tradicionais”.

     É por isso que tento incentivar as pessoas a registrarem sempre alguma coisa de seu entorno, dos mais antigos e da nossa história caiçara. Temos que aproveitar desse material humano, dos velhos caiçaras e das suas experiências!

         O “nego velho” Silvério Sabá, da Praia da Enseada, era também vendedor de peixes. Numa ocasião, passando com uma carga de peixe galo, obeba e maria-mole, num dia de sol muito ardente, parou para uma prosa e se refrescar com água  gelada. Era comum desse velho caiçara sempre trazer novidades, causos novos, coisa que eu escutava com o maior prazer. Eis o que eu ouvi naquele dia distante:

        “Iaiá, não teime. Solte a marreca, senão eu morro.
         Sou levado da breca.
         Quem ver a menina terna e mimosa,
        Pequena e redondinha,
        Não diz que conserva presa
        Sua bela marrequinha”.

      - Sabe o que é isso, Zezinho? Percebendo que eu não tinha resposta, emendou:

       - É lundu, diversão que embala o meu povo!

     - E sabe o que é marrequinha? Não sabe, né? É aquele laço que fica atrás dos vestidos das meninas.

       Depois de anos fui pesquisar a respeito de lundu. 

  “O lundu nasceu em Angola e Congo. Originariamente era um dança trazida pelos escravos nos primeiros anos da escravidão. A primeira referência escrita sobre esta dança data de 1780 - uma carta escrita por um antigo governador de Pernambuco ao Governo português, sobre danças de negros brasileiros denunciadas ao Tribunal de Inquisição.”.


        Foi-se o Sabá...foi-se tanta gente...Faz-me pensar na frase de um estudioso africano: 

   “Quando uma pessoa velha morre, é uma biblioteca que se queima”.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

ASSIM CONTAM OS MAIS VELHOS

Devoção ao Divino (Arquivo Kilza Setti)

               O meu primo Zé Roberto, criado com mandioca, banana, peixe e bicho do mato, de vez em quando desenterra umas passagens do nosso povo caiçara e faz a gente rir muito. “É de gente assim que eu gosto!”.

               Numa manhã dessas, cansados de tomar café e sonhando com ova de tainha assada, escutando a chuva que retinia numa chapa de alumínio, enveredamos pelo assunto de Folia do Divino. “Em época assim, num dia frio desse, os coitados dos foliões já estavam rejeitando café para poupar suas gargantas”. “É mesmo! Principalmente o versista!”. E aí eu lembrei da ocasião que o Velho Macuco, considerado o melhor versista de todos os tempos, diante da Bandeira do Divino, na sala do Bito Onofre, incluiu na música um verso do passarinho na gaiola:

O Divino vai embora/ O dono fica parado/
Coitado do curió que vive engaiolado/
Que benção tem gente assim?/
Que culpa tem o coitado?

Sabe o que aconteceu? Nunca mais o velho pescador –e passarinheiro como nunca mais se viu! – quis saber de receber a visita da Folia. “Mais forte que a devoção era a paixão pelos passarinhos”.     E emendou o Zé Roberto:

- E aquela vez, no Morro do Araribá, na casa da Dona Maria, assim que começou o agradecimento, os instrumentos já acompanhando o primeiro verso, o Pedro Brandão, versista da ocasião, reparou que a pomba da bandeira estava virada de costas, parecendo desprezar os devotos, mas disso não deu a entender.

A dona da casa, conforme tradição, segurava o estandarte sagrado. Alguém dos presentes, acho que era o marido, fez sinal à mulher do que estava acontecendo. A Dona Maria entendeu os sinais e rapidamente corrigiu a posição da pombinha na ponta do mastro, feito de um galho reto de jacatirão, de onde saiam as inúmeras fitas coloridas e as promessas dos fervorosos caiçaras. E os ritos continuaram cantados. Só na finalização o versista demonstrou que percebeu a falha. E a última rima saiu assim:

Dona Maria bem cá de cima/ É mulher inteligente.
Com uma cochada no pau/  Botou a pomba na frente.


Como era devoto o meu povo!

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

ASSIM APRENDEMOS

A nossa querida Tia Ana (Arquivo JRS)


Era quase assim a nossa escolinha, na casa da Tia Martinha. (Arquivo JRS)

        O mano Mingo, retornando na nossa infância, quando fomos encaminhados à escola, permite relembrar da pobre sala da casa da Tia Martinha, onde em cada fileira de carteiras funcionava uma série escolar, com uma professora dando conta de tudo, nos alfabetizando e nos revelando outros mundos. Assim crescemos mais, aumentamos a nossa herança cultural. Por esses dias, visitando a Tia Ana, moradora tão próxima do sopé do morro, conversamos muito sobre esse tempo tão gostoso.

Historinha

Quando a escolinha
agrupada do primeiro grau
da praia da Fortaleza
era no sopé do morro,
no meio do bananal,
uma cobra caninana
foi se enrodilhar
entre os caibros do telhado
para aprender o beabá.
Mas acabou sendo expulsa,
tão logo foi notada,
porque não estava inscrita
no livro de chamada.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

A TARA

         
Praia Grande do Bonete, vista do Morro da Bidu (Arquivo JRS)
                       Olá, Gisavasfi! Que bom que você está seguindo o blog!

          Ainda no começo do século XX, quando nem estrada de rodagem existia ligando o nosso município com os outros vizinhos, a pesca e a roça ocupavam quase todo o tempo dos caiçaras.

          No tempo das tainhas, de maio em diante, todo mundo ficava afoito, à espera dos grandes cardumes. “Tempo de fartura aquele!”. O Adelino, da Praia Grande do Bonete, tinha uma grande rede, muito especial para os grandes cardumes. Todos tinham seus quinhões após os compensadores arrastos.

          Do outro lado da Baía da Maranduba ficava a Praia da Caçandoca, terra do Vovô Estevan Félix. Era costume do pessoal dali acender uma fogueira e produzir bastante fumaça avisando da chegada das tainhas, resultando na descida imediata das canoas e da rede liderada pelo Adelino. Também em ocasiões de festas, eles se comunicavam com sinais de fumaça.

          Devido à religiosidade do meu povo caiçara, a cada lance de tainhas, a maior delas, chamada de tara, era separada e vendida. O que se arrecadava ia para a santa (ou santo) que protegia o lugar, que era festejado na praia ou dava nome à capela. No caso da Praia Grande do Bonete, além de São Sebastião, em janeiro, também se festejava Sant’Anna em julho.

          Um dos companheiros de pesca do Adelino era o João da Vargem, cuja amante era a Santana, gente do Jacundino da  Caçandoquinha. Ele não perdia nenhuma ocasião para uma visitinha rápida. “É para tirar o atraso, né?!”.

          Após o lance do cardume na praia da Caçandoca, conforme o costume, o Adelino jogou a maior tainha na proa. “Esta é para a Sant’Anna”. E saiu para um gole de cachaça na Armazém do Zé Félix, o tio do vovô.

          Ao chegar na canoa e ver aquela bitela separada na proa, o João da Vargem quis saber para quem era. De pronto escutou: “O Adelino separou para a Sant’Anna”. No instante ele pensou: “Ah danado! Então ele também está querendo a mesma mulher?! Eu vou antes dele levar esse peixe!”. E assim o fez.

          Ao voltar para a canoa, notando a falta da tara e perguntando aos companheiros, esta foi a resposta: “O João da Vargem levou para a Santana. Você não falou que era para ela aquela tainha?”.
 

          Que confusão! Daquela vez a santa não levou a melhor tainha. Quem saiu ganhando foi a fogosa Santana da Caçandoquinha.

sábado, 2 de agosto de 2014

É CASTIGO!

Nesse canto da praia morava o Adelino (Arquivo JRS)
     
       Em outros tempos os caiçaras viviam intensamente outros hábitos, estavam mais próximos do sagrado e se divertiam com coisas simples.  Digo isso apenas para apreciar a narrativa de mais um fato ocorrido na Praia do Cedro, terra dos meus parentes Lopes, dos Rozeno etc., aquela depois da Praia Grande do Bonete. Foi assim:

          A roça do Adelino era ali, na descida do morro, na Floresta do Cedro. O mandiocal, devido ao ataque das pacas, era cercado de bambu, com entradas onde ficavam armados os mundéus. Desse modo diminuía o prejuízo por conta dos roedores, tendo ainda mais uma fonte de alimentação.  “Como é boa a carne de paca!”.

         Numa ocasião, tendo visitado o tresmalho no escurecer, o meu parente João Inocêncio (ou João da Vargem), após puxar a canoa e guardá-la no rancho, na Praia do Cedro, subiu o morro com um bonito cação. Ao passar pela roça do Adelino, percebeu que o mundéu estava desarmado. Lá estava uma grande paca. O que fez ele? Tirou a caça e, em seu lugar, deixou o cação.

         No dia seguinte, ao pisar no mandiocal, o Adelino se assustou vendo o cação na armadilha. Chegando em casa todo espavorido foi logo comentando com sua esposa: “É castigo. Eu não devia caçar as coitadas das pacas. Elas também são criaturas de Deus”. Impressionado do jeito que estava, fez o mesmo comentário no jundu, junto aos outros caiçaras do lugar. Ao ouvi-lo, o João da Vargem assim falou: “Comigo também aconteceu coisa semelhante, compadre. Fui visitar o tresmalho, ali na Virada da Deserta. Sabe o que tinha nas malhas?  Uma paca. E das grandes! Acho que é castigo mesmo! Nunca mais eu vou pescar ali!”.


         Ah! Como era divertido esse pessoal!

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

ESPAÇOS NOSSOS

       
Eis a Capela das gostosas festas da minha infância!. (Arquivo JRS)
      Ao escrever relembrando as pessoas e lugares significativos da minha infância, eu faço com o maior respeito. Se em alguma parte pode haver interpretação negativa, é da cabeça de cada um. Quem me conhece sabe os meus princípios, o meu orgulho de ter recebido as muitas contribuições ao indivíduo que sou hoje. Até as “pisadas de bola” da parte do meu finado pai eu consegui dar a volta por cima. São as fraquezas humanas, né?

    Na Praia do Perequê-mirim, a nossa família viveu por dez intensos anos. Ali eu conheci os primeiros muros na vida. Nenhum era cercando as pobres casas de caiçaras. Por isso circulávamos tranquilamente.

      Nesta semana, passei reparando onde morava o Seo Bermiro e sua prole. Era como uma vila: tinha a casa do Agenor e do Altino. Também perto dali morava a Dona Margarida e seu neto Tico. Tudo era areia!

     Ainda no terreno arenoso, vizinhando com a Capela de Sant’Ana, moravam o Dito Neves e o Seo Targino. O quintal deste era outra vila dentro do Perequê, com os filhos (Dico, Euclides, Toninho...) se instalando ao redor da casa do velho pescador.

     Ah! O Dito Neves merece uma parada especial! O seu filho Joãozinho era meu companheiro de escola. Atentado que só! Foi nas costas dele que eu vi o professor Oberdan quebrar uma régua grande, de madeira.

    Os cajueiros do quintal do Dito Neves eram uma atração especial! Tinha do amarelo e do vermelho; ficavam carregados no verão. Nunca mais vi algo assim no nosso município! Hoje, recompondo aquele lugar da minha infância e as minhas lembranças, está uma escola infantil. Vi que  ao menos um cajueiro permanece sobre a terra.


      O Dito Neves era companheiro de caçadas do papai. Eles vinham do mato com aqueles porcos e, ali mesmo, na beira do rio que passava nos fundos da sua terra, faziam a limpeza (pelavam, cortavam, dividiam com os outros). Ao chegar em nossa casa, meu pai separava algumas vasilhas, colocava uns pedaços nelas e distribuía as tarefas: “Zezinho leva este tanto para o Germano. Mingo, pega esta aqui e deixa na casa do Jango. Jarico vai até o Edno da Elvina e fala que eu mandei esse pedaço para eles”. Era assim a nossa comunidade caiçara.

         A propósito: será que existe ainda aquele tranquilo rio onde tantas vezes eu apreciei os caçadores trabalhando e a Dona Joaninha lavando suas roupas e vasilhas?