terça-feira, 28 de junho de 2011

É dia de festa no mar!

                
         Bem ali, no começo da estrada, depois da capela N.S. das Dores na praia entre o Acarau e o Itaguá, no ano de 1980,  encostei-me   numa roda de causos. Bons homens! Autênticos caiçaras!  Lá estavam: Sebastião (o “Velho Rita”), Davi Alexandrino, Lauro Bourget, Janguinho, Élvio, Acari, Juraci e mais alguns. Olhavam o mar enquanto escutavam, contavam e davam boas gargalhadas. 
         Era dia de procissão em louvor a São Pedro Pescador. No lagamar, junto com alguns jovens e crianças, estava o professor Joaquim Lauro dando os últimos retoques em algumas embarcações para a festa no mar. Colavam bandeiras, faziam arcos de bambus; faziam varais de panos de redes onde dependuravam estrelas do mar, bocarras de caçoas e arranjos de conchas. Que empolgação!
         Nessa ocasião, depois de escutar o Janguinho explicando a cerimônia religiosa em alto mar, principalmente a benção dos anzóis e das redes, quis saber mais coisas. Por isso eu o acompanhei até a sua casa, na entrada para a praia do Tenório, para escutar mais um pouco, me preparar melhor para aproveitar o máximo do ato da tarde, da festa do padroeiro dos pescadores. A partir de uma fotografia antiga (e com a ajuda da dona Santana, a parteira), o bom homem assim explicou:
         - Este é o padre Lino dos Passos, um caiçara. Na década de 1930, querendo incrementar o feriado, em cima de quatro grandes canoas, entre a prainha do Padre e o Cruzeiro, teve a ideia de montar uma estrutura interessante: num tablado de 5m X 5m, com um altar e a imagem do padroeiro, celebrou uma missa. O morro, a boca da barra e a praia ficaram lotados de fiéis. Também à sua volta, conforme a fotografia em preto e branco, o mar coalhava de canoas. Era clara demonstração da religiosidade dos caiçaras.
         Hoje, apesar da devoção, a procissão dos barcos é apelo  cultural. Faz parte do calendário turístico do município. É pena que os limites da ignorância, principalmente de muitos que dependem da pesca, não contribuam para que ela cresça e atraia mais turistas para a nossa cidade. Em datas assim sinto falta do exemplo do professor Joaquim Lauro, natural da cidade de Lorena, mas em tão grande estágio de interação cultural que até suplantava muitos caiçaras. Quem não reconhece que as regatas de canoas foi iniciativa dele?
         Neste Dia de São Pedro Pescador, em cada pessoa engajada para a realização da procissão marítima eu vislumbro a imagem do empolgado professor. E concluo: é festa do povo que os afastamentos parciais promovidos pelas denominações religiosas estão matando. Será que não está passando da hora de deixar aflorar a criatividade, o prazer de festejar como uma única cultura?

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Desdobramentos da Revolta da Armada

        
         Conforme já relatei, a questão do porto no século XIX causava angústia à classe política e econômica de Ubatuba. Era um entrave ao desenvolvimento da cidade onde, após o declínio da cafeicultura, somente o mar se apresentava como viabilidade de progresso. Por isso que, nos últimos anos do reinado de Pedro II, com a aprovação e início das obras da ferrovia, cujo terminal era na Ponta Grossa, onde está até hoje o “Caisão”, houve uma alegria geral. Finalmente aparecia uma luz no horizonte.
         Porém, com a proclamação da República, os rumos ficaram confusos. Floriano Peixoto, segundo presidente do Brasil, enfrentou a Armada (Marinha), onde os monarquistas dominavam e tentaram impor algumas condições. Saiu vencedor. Os derrotados e seus aliados (simpatizantes) passaram a sentir o peso do “Marechal de Ferro”. Mas o que isso tem de relação com Ubatuba, com o nosso assunto do porto? É simples: os que dominavam a política local eram favoráveis à Armada. Logo, os investimentos previstos para serem aplicados aqui foram cancelados. E o sonho de um porto decente, de uma ferrovia desde São Bento do Sapucaí até o nosso município “foi por água abaixo”.
         O que vem a seguir é um desabafo do deputado Dr. Esteves da Silva, proferido na capital em 1899:
         “Senhor presidente, é realmente triste o que eu vou narrar:  fez-se um cais aberto na rocha viva, preparou-se o leito todo da estrada, construíram-se até estações elegantes com armazéns, como poderão atestar alguns colegas, aplicaram-se os trilhos e, afinal, a infeliz revolta de 1893, por motivos que não vem ao caso expor, deu à caducidade da concessão, que foi o tiro de morte para aquela localidade. Uns compraram terrenos preparando-se para construções, outros fizeram movimentos de capitais que estavam perfeitamente garantidos, de modo que desse tiro resultou a miséria, o descalabro para grande parte da população”

domingo, 26 de junho de 2011

Viva memória

                                Hoje, na pressa do cotidiano, esquecemos muito rapidamente de tudo, inclusive das resistências e de pessoas que nos garantiram o ser que somos e o espaço que temos. Por isso que eu recomendo o vídeo Trindade para os trindadeiros, de Davi Paiva e Silvio Delfim.
                O documentário relata a luta dos moradores dos caiçaras da região da praia da Trindade, em Parati, a cidade vizinha. É emocionante assistir, principalmente porque muitos jovens daqui de Ubatuba (mesmo não estando diretamente envolvidos), por intermédio da jornalista Priscila Siqueira (livro Genocídio caiçara), na época moradora de São Sebastião, se viram convocados a refletirem sobre o que estava ocorrendo e a solidariedade necessária para se afirmar e lutar como uma minoria (caiçara), fazendo valer toda a nossa tradição diante da especulação imobiliária devastadora. Foi quando buscamos redescobrir valores e reafirmar aqueles que pareciam ser de pouca importância. Dessa época está por aí, atuando dentro das possibilidades, uma turma que prova amar o nosso espaço e a nossa cultura.
                Cabe salientar: aqui em Ubatuba, a linha avançada da igreja católica naquele momento histórico foi a grande responsável pelo engajamento de alguns jovens nessa luta. Foi uma teologia da libertação que fez o apelo à luta contra os exploradores do povo. É pena que isso já não se possa afirmar hoje, quando a alienação religiosa se vangloria de produzir pessoas “carismáticas”, capazes de enxergar somente os seus interesses particulares com desculpas de alcançar a recompensa divina, o lugar no céu.
               O blog www.davidtrinda.blogspot.com  é a minha recomendação para saber mais.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Dia de São João


                
                                                        “Capelinha de melão/ É de São João/ É de cravo/ É de rosa/ É de manjericão...”
         Juntamente com os rituais da comunidade da praia da Fortaleza, essa cantiga escolar cumpria o papel importante na vida da gente: o exemplo dos santos, em especial de São João, a continuar se repetindo em nosso meio, além de reforçar a crença de que alguém, depois de passar “por este vale de lágrimas”, agora era, no céu, mais um  intercessor  dos “pobres pecadores”.  De que forma ajudá-lo em tal tarefa? Repartindo o pouco de cada dia, fazendo fogueiras, bebendo consertada e quentão, rezando, dando do pouco dinheiro que possuía uma contribuição à igreja através dos leilões, etc.
         Quem se alegrava era todo mundo, inclusive os caiçaras de outras comunidades. Doces, salgados e bebidas eram preparados em pitirão (mutirão) ou individualmente e distribuídos gratuitamente para todos. Os festeiros se esmeravam nos preparativos: todos eram pobres, mas queriam fazer o melhor que podiam. Os fogueteiros sabiam os momentos de manifestação. E tome riscos brilhantes nas noites escuras! Que  alegria!
         A fogueira era uma parte especial! Dias antes os homens já estavam no mato à procura de boas toras que dessem sustentação ao fogo necessário para iluminar todo o terreiro em frente, entre a capela e o mar. Depois da festa acabada, algumas dessas toras ainda ardiam por alguns dias entre cinzas e areia.
         A Bandeira do Santo, antes da reza especial, era levantada no mastro colorido, onde ficava por um ano. Ah, que ritual! As bandeirinhas de papel, fixadas com cola feita de farinha de mandioca, se esparramavam em formas de varais por todo o espaço.
         Canas cheiravam entre as brasas. Já sentiu o cheiro da cana assada? Também aí estavam as batatas e as mandiocas sendo assadas. De vez em quando alguém trazia um galho de abricoeiro verde só para produzir um gostoso estalido. E as fagulhas subiam até serem apagadas pela friagem da noite. Nossos olhos acompanhavam a desenvoltura das luzes em louvor ao santo.
                Por fim, uma imagem inesquecível: sob um tapete de brasas na praia, acima da linha do lagamar, poucas pessoas passavam calmamente descalças. Era o batismo da fogueira na tradição caiçara. Só não me perguntem como conseguiam isso.
         Para concluir: era o dia de podar as roseiras, rogando ao santo para que nunca faltasse nos quintais de nossas humildes casas de pau a pique.
         Desse tempo cheguei à conclusão sobre a importância da religião: reforçar os laços sociais, criar solidariedade, contribuir para as alegrias do ser humano. Só isso (?).
         Viva São João!
          Viva o povo caiçara!
         Viva!

quinta-feira, 23 de junho de 2011

“Raposa velha que ele era!”


            O velho Joaquim Amaro adorava parar para prosear, sobretudo quando eu estava construindo a minha casa. Nem preciso dizer que a recíproca era verdadeira.  Numa dessas ocasiões, já cansado de chapiscar parede, ele apareceu; foi quando lhe contei  sobre o que os ingleses pensaram para resolver a questão do assoreamento da barra do rio Grande. Isso há muito  tempo!  Nem precisei explicar o tal de corta-rio, porque assim ele interferiu:
         - O sei bem o que é isso, Zé! O Moravek, que se fez dono de um punhado de terra que não era dele, também fez isso, bem aqui onde nós estamos!”.
         Fiquei admirado, até porque eu conheço muito pouco do referido personagem. Quis  saber mais dessa novidade. E ele continuou (agora mais animado por deve ter percebido os brilhos nos meus olhos):
         - Foi o seguinte: este loteamento (Bosque dos Coqueirais) existe porque o homem foi astucioso, soube se aproveitar de situações que outros não tinham tanta ousadia, nem queriam mais daquilo que tinham. Também existiu sempre entre as pessoas daqui o respeito pelas coisas do jeito que Deus fez.
         Então, por curiosidade, eu o apressei. O que será que levava o velho a dar voltas na novidade? Tenho a impressão que isso não passou despercebido, porque a fala a seguir revela a sua percepção.
         - Calma, Zé!  O que ele fez foi mais ou menos aquilo que você disse dos ingleses. Só que não foi pensado numa questão da cidade, mas sim no seu bolso, em como podia aumentar ainda mais o seu patrimônio. Sabe aquela curva do rio repentina no fim desta rua (das Palmeiras)? Você não acha estranho isso? Tem uma área plana logo a seguir, mas a água nervosa da cachoeira prefere tomar outro rumo?
         Não pude deixar de pensar nisso pela primeira vez. É mesmo!
         - Então vou explicar melhor:  o Moravek, raposa velha que ele era, percebeu uma área gratuita, beira de rio preguiçoso, cheio de voltas, zona de gamboa. Resolveu endireitar tudo: abriu uma vala desde a pedra da Toca da Onça até o pé do morro da Carçada; depois encheu de terra, pedras e muitas outras tranqueiras naquele lugar ali (aponta o fim da rua das Palmeiras). Então, foi só deixar a força das águas fazer o resto! Entendeu?
         Entendi muito bem! Daí relacionei os vários pontos  baixos por todo o loteamento, onde sapos abundavam. É isso mesmo! Do corta-rio surgiu o loteamento onde moram tantas pessoas. Tenho a impressão que é o único lugar realmente planejado no bairro do Ipiranguinha.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Ubatuba no século XIX: aspectos econômicos

       Em 1836, pelas informações dadas por Félix Guisard Filho, em seu livro Achegas à história de Ubatuba, o porto de Ubatuba era muito movimentado: quatro sumacas, três escunas, um iate, sendo a maior parte deles de proprietários do município, tinham uma regularidade em suas atividades.
         Os dias eram de prosperidade, principalmente pelo desenvolvimento das atividades agrícolas e pela vida portuária. Também se intensificava o intercâmbio com o interior. Porém, as dificuldades de comunicação com as vilas de serra-acima, provocam o declínio da produção. É de 1853 um ofício da Câmara que diz: “Vários tropeiros já têm procurado outros portos, os quais, apesar de serem longe, não oferecem tanto perigo”. Ou seja, as estradas são péssimas. Também é dessa época o início da decadência cafeeira. Só para comparar, atente-se aos dados da produção/escoamento nos seguintes anos: 1853= 150.000 arrobas; 1861= 30.000 arrobas; 1886= 5.000 arrobas.
         Se bem que apresentasse algumas desvantagens, o porto de Ubatuba tinha capacidade para o desenvolvimento comercial. Entre as desvantagens estava a distância do ancoradouro, foz do rio Acarau, que se achava a meia légua do porto de embarque, tendo que atravessar uma baía desabrigada e constantemente agitada, com ocorrências de sinistros. Isso naturalmente dificultava o transporte de mercadorias para os barcos (carregamento/descarregamento). Ofício de 1852 informava: “É má e perigosa a barra desta vila. Muitos prejuízos têm sofrido no embarque e desembarque dos gêneros (...) O rio é estreitíssimo e circundado de pedras, bancos de areia e, o que é tudo, o mar quase constantemente agitado de maneira que são inúmeros os naufrágios que ali tem havido”.
         É interessante notar que até o mapa do almirantado inglês da época assinala a possibilidade de um corta-rio, ou seja, a desembocadura do rio Grande seria desviado para o Perequê-açu, estando resolvido dessa forma a formação dos bancos de areia na área portuária.
         Na prainha do Padre estava localizado o porto propriamente dito. Por ser pequena, impedia a permanência das tropas de serra-acima, cujo comércio com Ubatuba era constante.

Causos e poesias

         
         O meu irmão Domingos também adora os causos, sobretudo os causos de nossos familiares; busca transformar tudo em poesia. O que vem a seguir foi mais uma escolhida pela prefeitura de Porto Alegre, num projeto denominado “Poesia no ônibus”. Trata-se de uma seleção após um concurso, onde os escolhidos são impressos nos transportes coletivos (ônibus e trens) e permanecem por um período para serem “saboreados” pelos passageiros. Enfim, causa-me orgulho saber que nossos causos, através das poesias do mano, viajam em terras gaúchas e em tantas outras.                                           




História de Caronte


Por uma estrada de terra
que corta sete praias
e sobe sete morros
se chega à casa de meus avós.
Carga grande só pelo mar,
inclusive o transporte dos mortos,
e foi assim que Bito Celidônio
gritou lá do alto do morro
perguntando quem tinha falecido
e o barqueiro respondeu
que tinha sido o Bito Celidônio.



Domingos Fábio dos Santos

terça-feira, 21 de junho de 2011

A ilha de Joatão

              
         “Ainda me alembro como se fosse hoje”. Com essas palavras comecei, numa bela manhã de domingo, escutando o velho Pedro Cabral, na praia do Perequê-mirim. O tema era a ilha Anchieta, um espaço tão corriqueiro dos pescadores caiçaras naquele tempo (início dos anos 70). O dia era 20 de junho; exatamente o dia em que estourou a rebelião no presídio da ilha, no ano de 1952. Naquele dia, da boca do citado praiano e de outros que formaram a roda, no jundu, eu escutava mais do que anotava. O interesse não era só porque eu gostava de escutar os causos do meu povo, mas também porque a professora nos deu a tarefa de pesquisar sobre a história do fato – o levante da ilha Anchieta. Disse que pretendia recolher o maior número possível de depoimentos, e, naquela praia, estavam vários ex-soldados e ex-funcionários que fizeram parte da história do presídio. Assim, um por um, nós montamos uma “colcha de retalhos”, um lindo painel que ficou bastante tempo na parede da nossa pequena escola para que todos lessem. Lá constavam os nomes de honrados homens: Chico Cruz, Rodolfo Cabral, Dito Góis, Xavier, Faria Lima, Newton Cirillo e tantos outros.
         A data da grande fuga: 20 de junho de 1952. No Instituto Correcional da Ilha Anchieta, cumpriam penas 453 presidiários. De 129 evadidos, 108 foram recapturados, 15 mortos e 6 desaparecidos. Policiais mortos: 8; funcionários civis: 2; presidiários: 3 (na ilha). Total de mortos: 28; órfãos: 23; viúvas: 9. Tais números estão documentados.
         Assim como um ritual a cada ano, no dia 20 penso na data. A cidade certamente esqueceu. Porém, ainda há tempo de fazer, como nos idos da minha escola primária, uma bela “colcha” com os retalhos de nossa história. Cada cidadão deste município tem o direito de manter viva memória, porque, como disse alguém, sem isso ninguém propõe nada; só copia. Também os que adotaram a cidade como a sua terra precisam refletir sobre uma identidade a ser resgatada, refeita, mantida e valorizada. Já passa da hora, independente da região de onde veio, cada morador de Ubatuba refazer, participar da identidade local tal como fizeram os europeus, africanos e ameríndios: deixaram muito de si para se fundirem no ser brasileiro. É o que, no estudo da Filosofia, chamamos de dialética. E disso decorre a inspiração para o título deste: Joatão e a ilha , publicado em 1966, é uma obra maravilhosa para ser lida por todos, principalmente quem adora um desafio dialético. Seu autor, José Fonseca Fernandes, narra em forma de romance o grande levante. Por enquanto não vou escrever mais. Só deixo uma “isca”:
         “Quando Joatão e seus dois companheiros atingiram o Quiririm os demais já guardavam distância, ávidos de sumir do litoral.   –Água boa esta –disse com satisfação o moço,  -  Não suportava mais a sede. Os outros dois já estavam de cara mergulhada no Quiririm.  Joatão deitou-se na Praia do Puruba”.

                                                         Boa leitura!

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte X)

Esta é a última parte, na verdade o meu comentário depois da conversa com a dona Silvia. Espero que o material produzido possa ser de contribuição para possibilitar novas reflexões sobre o nosso espaço, tal como um ovo no ninho: potencial de um novo ser.


       Algumas considerações minhas:
     1- o norte do município teria lucrado muito se os sonhos do francês, ou melhor, do casal de franceses se concluíssem, pois sua fazenda demonstraria aos caiçaras as alternativas tecnológicas e as medidas mais racionais para acreditar no potencial produtivo que temos;
      2- o povo caiçara teria outra perspectiva de vida e de resistência frente à especulação imobiliária que acompanhou um modelo de turismo predatório, ou seja, que condicionou melhoria de vida à renúncia das terras ancestrais;
      3- a cultura, continuando enraizada e circundada pela realidade próxima, se fortaleceria mais e contribuiria para a preservação de todos os aspectos implícitos no binômio natureza-homem;
      4-um povo vivendo bem com suas raízes também ama a cultura erudita e fermenta as bases para uma sociedade mais justa, solidária e com mais amor, ou dizendo de outra maneira, recria a Terra.

Ubatuba, 30 de abril de 2002(Data da entrevista)

                                        Entrevistada: Sílvia  Polacco Patural

domingo, 19 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte IX)

       
         Infelizmente não tive sorte com a Sesmaria, pois o meu caseiro Melentino tentou uma ação de usucapião, mas sem nenhum êxito. Apesar disso declarou-se dono da Sesmaria e, há anos, vem vendendo pequenas áreas a  compradores de Ubatuba que sabem perfeitamente que o mesmo não é proprietário.    A Patrícia, minha primeira filha, assim  que alcança os dezoito anos se volta para a questão.  Nós temos os documentos, os registros dos funcionários. Até indenização o Melentino recebeu.
        Em 1992, Jean Pierre Júnior, sendo engenheiro civil, decide vir morar em Ubatuba, iniciando a  construção de seu primeiro barco de pesca de camarão e dedicando-se exclusivamente a essa atividade. É casado; tem uma filha. Aqui nesta casa somos nós: eu e Patrícia. Eu decidi, após me aposentar pela Unitau, vir também para Ubatuba. Afinal o meu filho já estava morando aqui, além desta terra ter fascinado por tanto tempo a família Patural.
        Atualmente não pensamos mais em mexer na questão do Ubatumirim. Porém, toda a documentação está em nosso poder. Há alguns anos estivemos na propriedade; deu pena ver tudo aquilo sem nenhum investimento, as pessoas que se apoderaram estão vivendo numa situação de miséria e não têm nenhuma perspectiva de vida. Vocês acreditam que eles continuam usando as duas casas que ainda foram construídas por nós, sem fazerem nada de melhorias?
        Antes de concluir a minha fala preciso dizer que até um estudo do potencial das águas das cachoeiras foi feito com muita dedicação pelo Jean Pierre; já tinha o projeto de energia gerada alí mesmo, tornando, certamente, uma fazenda-modelo.
        Para finalizar: assim que os meus pais souberam do acorrido, me escreveram pedindo que retornasse à França com as crianças. Eu pensei bem, refleti sobre a situação da Europa e sobre os sonhos em que eu e meu marido tanto apostamos, me alegrei da nossa ousadia e coragem que se baseava num grande amor. Além do mais, eu estava empregada, ganhando razoavelmente bem e, as crianças estavam estudando e se dando bem no Brasil. É lógico que eu pensei: se voltasse para lá teria que recomeçar tudo de novo. E eu amo este país!”

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte VIII)


         Depois disso tudo ficou muito difícil. Imaginem uma viúva, com dois filhos pequenos, se deslocar de Taubaté para o Ubatumirim num tempo de péssimos transportes, quando nem se sonhava em estrada de rodagem para o lado norte do município. É bem lembrar que a BR-101 só vai se tornar realidade quinze anos depois da tragédia. No entanto, ainda eu estive alguns períodos de férias em nossas terras: uns dois ou três anos consecutivos. Depois tive que largar tudo, me dedicar ao trabalho e às crianças.
        Depois da morte de Jean Pierre tentei conservar as posses. Foi muito difícil, pois a eminência da abertura da rodovia provocou uma verdadeira loucura. Compradores de todas as partes surgiram com malas repletas de notas de pouco valor, mas que pareciam uma fortuna para os ingênuos caiçaras; assim adquiriram as posses. Não me sai da lembrança um caso, de 1965, que muito me chocou: foi a troca de uma belíssima posse entre a praia e o rio, no Ubatumirim, por uma casinha popular inacabada no bairro da Estufa II, num terreno sem qualquer documentação. Depois vieram os grandes grileiros, chegando a ocupar áreas com homens armados. Para uma mulher sozinha era impossível enfrentar esses jagunços. Assim, pensando nos meus filhos e já lecionando na Unitau, além de estar cansada de passar todas as minhas férias e alguns finais de semana nessa luta, deixei a casa da praia aos cuidados do Benedito Rolim. O Sertão da Sesmaria do Ubatumirim ficou sob os cuidados de outro empregado chamado Melentino.
        Quando o Dito Rolim se ausentou por questões particulares, a posse da praia foi invadida. Porém, graças à dedicação e competência do doutor Manoel Casal del Rey Aspera, após seis anos de processo, conseguimos reaver a área e, num acordo com o próprio advogado, a trocamos por uma casa no bairro do Tenório. Após reformas, nós a alugamos na temporada.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte VII)

       
        Chegamos à parte mais dolorosa da história de Jean-Pierre Patural e familiares. Em 1961 aconteceu o desastre. Numa véspera de embarque de bananas, Jean Pierre decolou para Ubatuba. Ao chegar ao Ubatumirim constatou que uma peça fundamental para que o trator funcionasse estava quebrada e, a urgência do serviço fez com ele  retornasse no mesmo dia para Taubaté. Estranhamos o seu retorno.
        Como sabíamos que ele tinha retornado? Era fácil, pois o hábito dele era, antes de aterrissar em Pindamonhangaba, dar um voo rasante sobre a nossa casa. Assim, calculávamos que após uma hora já estaria conosco. Era o tempo suficiente para acomodar a aeronave no seu devido espaço e tomar um ônibus que circulasse entre as duas cidades.
       Assim fez ele: providenciou a peça e retornou para o Ubatumirim. Tinha pressa porque o barco passaria no dia marcado, para fazer o embarque da grande carga bananeira prevista. Foi quando aconteceu o desastre.         Estranhamos a sua não chegada no dia esperado; nem no outro, nem no outro. Quando recebemos o telegrama do capitão do barco bananeiro dizendo que Jean-Pierre não havia estado no Ubatumirim e que não tinha encontrado nenhuma carga de bananas na praia, desconfiamos que o pior já tinha acontecido. Imediatamente entrei em contato com a fábrica CTI (em Taubaté) que tinha uma linha telefônica direta com Ubatuba. Assim confirmei que o meu amado tinha desaparecido. Com o auxílio de amigos, funcionários da Mecânica Pesada, chamamos o Batalhão de Exército de Pindamonhangaba. Assim foram iniciadas as buscas pela Mata Atlântica. Após uma semana só o avião foi encontrado: estava totalmente destroçado. As buscas continuaram sem nenhum resultado. Desesperada, chamei uma equipe de paraquedistas de São Paulo especializada nesse tipo de busca. Em vinte e quatro horas encontraram o corpo de Jean Pierre na beira de um rio, cuja distância era, aproximadamente, quatro quilômetros dos destroços do avião.   O avião, modelo “teco-teco”, provavelmente foi jogado na mata por uma dessas fortes rajadas de ventos, tão comum de ocorrer naquela época do ano. Foi essa a suposição de um comandante das buscas.  É quase certo que tenha sido assim mesmo”.
        O avião caiu não muito longe da estrada, numa distância média de cinco quilômetros. Ele se feriu e, segundo o laudo pericial, ainda sobreviveu uns cinco dias. Isso se deduziu pela grande distância entre os destroços do avião e o corpo desfalecido. É certo que teria se salvado se tivesse tomado a trilha certa: bastava seguir o lado da bifurcação que o conduziria à estrada em vez de  se enganar e acabar por embrenhar-se ainda mais na mata fechada. Mas... se é fácil de se enganar pelas veredas quando estamos sãos, imagine as grandes probabilidades para quem estava ferido e não estava ainda tão familiarizado com a Mata Atlântica. Talvez também tivesse sido socorrido pelos caçadores se fosse tempo de caçadas. Mas não era. 
       Entre o momento em que eu recebi o telegrama de Santos (do comprador das bananas) e o desfecho final (encontro do corpo), passaram-se vinte e um dias.  Era o ano de 1961; meu marido tinha trinta e dois anos.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte VI)

       
         Após seis anos plantando, com vários funcionários (Dito Rolim, Melentino...), a plantação estava em franca produção, começando a dar lucro. Surgiu a necessidade de aprimorar o transporte dos produtos. Era o ano de 1958 quando compramos, na Casa Granadeiro, em Taubaté, um trator. Questão: Como trazer o trator para Ubatuba, depois levá-lo até o Ubatumirim? Solução: Desmontá-lo todinho, transportar pela rodovia e pelo mar, e, remontá-lo na roça, onde ficou definitivamente.
        Aconteceu a melhoria na estrada da Sesmaria para o trânsito adequado do trator. Para levar o trator até o bananal, Jean-Pierre abriu uma estrada de sete quilômetros, sem máquinas, apenas com foices e enxadas. No local denominado “gurita” foi preciso fazer uma ponte de madeira que fosse bem resistente para que pudesse passar o trator puxando a carreta carregada de bananas. Ele ainda ensinou um empregado chamado Freitas a dirigir o trator, dando algumas noções de mecânica; pensava, num futuro próximo, ensinar outros rapazes e montar um curso para a formação de técnicos agrícolas. Foi uma grande novidade. Era gostoso ver o trator repleto de meninos, com o meu marido passeando com eles; lotavam a carroceria. Essa condução era atrelada a um carroção que escoava toda a produção para a praia, onde um barco grande, cujo nome era Manaus,  comprava tudo”.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte V)

            
         Aproveitávamos as férias escolares todas na roça. Quando a Patrícia tinha quatro anos, nasceu Jean-Pierre Patural Júnior. É, pois é! Ele nasceu no Ubatumirim! Ele veio antes do previsto. Essas coisas acontecem; as mulheres entendem bem disso: as crianças não nascem no dia em que achamos que vão nascer.
        Estávamos no Ubatumirim, na nossa aconchegante casinha, quando comecei a sentir as contrações. Só que eu não fiquei nem um pouquinho preocupada, pois confiava muito no meu marido. Ele também era zootecnólogo; tinha sido o parteiro no momento do nascimento da Patrícia, em nossa casa de Taubaté. E, convenhamos, cá entre nós: não existe muita diferença entre o parto de uma mulher e o parto de uma vaca. Além do mais eu pensava: muitas mulheres já deram à luz neste lugar, com condições mínimas de higiene; seus filhos estão todos vivos. Isso sem contar que tínhamos uma farmácia  bem montada para atender, em casos de emergência, a população local. Ah!!! Quantas vezes ela foi usada!!!
        Assim nasceu a nossa segunda criança. A única inconveniência foi a falta de roupinhas e de fraldas para protegê-lo. Um lençol, que ainda era parte do nosso enxoval, foi cortado em pedaços regulares e resultou em oito fraldas. Ah! Nós mantínhamos  na praia um ponto comercial, uma “vendinha”, para atendimento, sobretudo, dos empregados. Lá tinha, inclusive, o morim, que era um tecido muito barato. Foi de lá que o meu marido trouxe os panos que eu os transformei, costurando à mão, em várias pecinhas de roupas. Um balaio serviu de berço para o bebê. [Neste momento a entrevistada vai buscar uma peça de roupa infantil minúscula já amarelada, dizendo que era azul. É uma relíquia feita com todo o carinho que só uma mãe muito sensível é capaz de conservá-la por quarenta e cinco anos]. Desse tempo data a nossa relação com a Carmem.


         Carmem era uma adolescente com quinze anos quando o Jean-Pierre nasceu. Desde cedo ela adotou o menino; foi a babá desde o primeiro instante. Nós a levamos para Taubaté e, ela só deixou a nossa casa para se casar. Foi como uma filha. Era gente do Apolinário. Atualmente mora no Jardim Luamar (Estufa II) e está muito bem. É certo que passou por certas dificuldades, mas soube usar a cabeça. Estamos felizes por ela.
        Só tem uma coisa que me marcou bastante: a volta com o bebê para Taubaté. Ainda estava toda dolorida e tive que vir de canoa para a cidade, depois embarcar no ônibus para Taubaté e enfrentar tantas horas de sacolejo numa estrada medonha.

domingo, 12 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte IV)

           
Logo o barco ficou pronto. E agora? Como tirá-lo do quintal? Ainda bem que no terreno ao lado não havia nada de construção. A solução foi derrubar um pedaço do muro, passar o barco e, depois, refazer a parede. Um caminhão foi utilizado para trazer o barco até Ubatuba. Parece-me que foi o primeiro barco registrado na Colônia dos Pescadores. Isso foi em 1956. Ainda temos tal documento em perfeito estado de conservação. Esse barco nos foi muito útil. Porém, em diversas ocasiões em que precisávamos dele passávamos raiva, pois os empregados se aproveitavam das nossas ausências e saíam para passear ou pescar. Isso gastava a nossa paciência.


  O barco ajudava, mas mesmo assim, devido ao gênio de praticidade do meu marido, se fazia necessário outra alternativa de transporte que diminuísse a perda de tempo. Havia também, no caso do barco, uma dependência das condições do mar. Nesse ínterim já tínhamos construído a nossa primeira casa no Ubatumirim. Assim, Jean-Pierre resolveu adquirir um avião, ou melhor, encomendou as instruções de uma empresa francesa. Novamente o nosso quintal em Taubaté se transformou. Agora era um hangar. Logo estava pronta a fuselagem; as asas deram mais trabalho. Um serviço que mais me impressionou foi a confecção da hélice: dos pedaços de madeira marfim surgiram as pás com suas aerodinâmicas perfeitas. Depois de pronto ele saiu do nosso quintal seguindo o mesmo modo da retirada do barco.
  1.       
              Após aprovação do Centro Técnico Aeroespacial de São José dos Campos, Jean-Pierre tirou brevê de piloto no Campo de Marte, em São Paulo. Aí foi uma maravilha!!! A partir de Pindamonhangaba, pois em Taubaté não havia campo de aviação, levávamos trinta e oito minutos até alcançarmos a nossa área de pouso no Ubatumirim, que construímos na proximidade da nossa casa.  Na cabine havia espaço para duas pessoas; a Patrícia ia no colo.

sábado, 11 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte III)

        
        De fato as terras do Ubatumirim, sobretudo as da Sesmaria, nos agradaram muito. Aí fomos acolhidos na casa da família do Manoel Leopoldo. Para a dormida nos dispuseram uma sala com esteiras e penico, onde havia um montão de sapê secando. Era um calorão de janeiro; baratas passeavam por todos os lados. Ao abrirmos a porta para a entrada de frescor, também entraram os cachorros. Mesmo assim, nós, de tão cansados, desmaiamos.
        No dia seguinte fomos conhecer a Sesmaria, dos Nunes Pereira. Gostamos muito. Ainda bem que a volta para a cidade foi de canoa.
        Chegando à cidade, logo procuramos nos informar sobre a situação legal daquelas terras. Quem nos deu segurança e nos garantiu da propriedade dos Nunes Pereira  foi o coronel Ernesto de Oliveira, pai do “Filhinho” (da farmácia). Satisfeitos e cansados embarcamos no ônibus para Taubaté. A viagem durava na média de quatro horas, mas o tempo tinha de estar bom, sem chuva, senão...
        Após um breve período fizemos a segunda viagem para o Ubatumirim. Desta vez a noite nos alcançou na praia da Itamambuca. Novamente pedimos pouso, mas as condições estavam tão críticas, enquanto que o luar e a noite estava tão convidativos, que acabamos pegando uma  humilde coberta que nos ofereceram e fomos dormir nas areias da praia. Jean-Pierre somente ajeitou os “travesseiros” com a própria areia. Só sei que acordamos no dia seguinte com o sol brilhando e a maré quase nos alcançando os pés. Chegando no Ubatumirim nos reencontramos com o Mané Leopoldo e compramos a Sesmaria do Ubatumirim, que era dos Nunes Pereira. Ela distava seis ou sete quilômetros da praia. Mais tarde nós compramos mais uma posse.     Logo iniciamos a plantação de bananeiras, alcançando a marca, em poucos anos, de trinta mil pés.
        A primeira dificuldade sentida era com relação ao deslocamento, pois se perdia muito tempo indo a pé desde a cidade até o Ubatumirim. Me parece que pelo mar a distância era de vinte e dois quilômetros, enquanto que por terra, seguindo o caminho usual dos caiçaras, perfazia trinta e seis quilômetros.
        Eu trabalhava lecionando francês em Taubaté, enquanto o meu marido se dedicava com exclusividade ao nosso empreendimento em Ubatuba, pois tínhamos camaradas que precisavam ser orientados e acompanhados em seus trabalhos, senão... Dessa necessidade surgiu a ideia de se fazer um barco. Foi quando o nosso quintal em Taubaté se transformou num miniestaleiro, recebendo as madeiras e o motor de centro-modelo Ford alemão.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte II)

       
       Chegamos esperançosos em Taubaté, mas as condições também não estavam tão favoráveis. Nesse ínterim nasceu Patrícia. Deste tempo é a experiência de arrendamento de um sítio em Redenção da Serra, onde ensaiamos um modelo de produção, sobretudo de batatas. A seguir conhecemos Ubatuba.
        Através de um convite de uma família muito amiga -os Guisard- viemos, em 1953, conhecer Ubatuba. Eles eram os donos do Casarão, onde está atualmente a sede da Fundart. Foi em uma de suas casinhas, atrás do Casarão, que nós ficamos hospedados. Meu marido  - Jean-Pierre - se entusiasmou pela cidade.      É preciso lembrar que ele adorava o mar; era um velejador em nossa terra natal. Ainda temos a foto de seu primeiro veleiro na região do Canal da Mancha, Bretanha, norte da França. Logo se empolgou em investir aqui.
             Em 1954 nós partimos à procura de um lugar que, além de agradável, oferecesse as condições propícias de cultivo e de instalações. Meu marido era um empreendedor. O lado sul do município logo ficou fora de cogitação. Motivo: a abertura da rodovia Ubatuba-Caraguatatuba estava sendo concluída, fazendo com que os preços das terras daquele lado encarecessem muito. Então nos falaram do lado norte, das vastas áreas e de outras vantagens.
        Num final de semana, após deixarmos a Patrícia com alguém de muita confiança em Taubaté, começamos a nossa aventura para o lado norte do município. Por volta do meio-dia deixamos a cidade, seguindo sempre a pé.  Passamos o Perequê-açu, o Saco da Mãe Maria, a praia Vermelha com suas areias grossas, a praia do Alto - que até hoje é muito bonita -, a praia de Itamambuca. Imagine tudo isso a pé e com muito calor! Depois chegamos ao morrão da praia do Félix e, finalmente, paramos ao escurecer, na praia do Léo - aquela que, desde 1991, devido a um desabamento da estrada após forte chuva, está soterrada numa boa parte.
        Na praia do Léo batemos palmas numa casa e perguntamos se havia ali por perto alguma pousada ou coisa do gênero. Imagine só!!! Isso era comum na Europa. Disseram que não. Nos ofereceram um pouso, numa cama simples com esteira de taboa. Foram muito gentis conosco.  No dia seguinte, já sabendo dos nossos motivos, disseram que para os lados do Ubatumirim e do Puruba é que tinha boas terras. E era mesmo! Pura verdade!
        No rio Puruba paramos e esperamos um bom tempo até que o balseiro aparecesse. Parece que ele estava almoçando, depois deve ter dormido um pouquinho. Nem me lembro mais direito deste detalhe. Só sei que ele apareceu e, assim alcançamos a praia da Justa. Finalmente, depois de um pequeno morro, estávamos no Ubatumirim.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Franceses sonhando em terras de Ubatuba(Parte I)



        O tempo passa, as pessoas morrem, as coisas se acabam. Somente as lembranças podem ser eternizadas.  Estas, ou são tristes ou são alegres, de heroísmos ou covardias, dizem respeito a muita gente ou somente a um pequeno núcleo.  A minha função, a partir dos estudos e das conversas é de provocar reflexões, fazer a minha parte no processo civilizatório, fornecer pistas para que outros avancem nas pesquisas para entender melhor a realidade próxima e a humanidade. Assim, cada história, cada causo dos tantos causos que continuo escutando causa inquietação, pede para se espalhar em todas as direções, quer ser conhecido, discutido, criticado, etc. tal como o vento noroeste, tão constante na nossa realidade, a espalhar folhas e levantar poeira em todas as direções.
        Conforme eu escrevi em outra ocasião, a partir de agora apresento ao público a história, cujo subtítulo bem que poderia ser A saga Patural. Espero não ser cansativo e quero apelar, principalmente àqueles que têm uma pequena noção geográfica do município de Ubatuba, para imaginarem o nosso espaço há mais de cinquenta anos e seus desafios onde “só o de comê tinha em fartura”.  A presente narrativa logo completará uma década. Poucas modificações e alguns comentários se fizeram necessários para tornar a leitura mais agradável. Espero que gostem. Sempre aguardo os comentários que possam advir. É um prazer primar pelo diálogo edificante. Eis a primeira parte de um texto de farturanta nosso espaço hrincipalmente s direçalhar em 
        Devo admitir que há muito tempo tenho uma curiosidade pela “história do francês que caiu com um avião na serra”, contada pelos caiçaras mais velhos. Esta é a oportunidade. É com muito prazer que faço o relatório pautado, principalmente, nos meus “minúsculos garranchos”.
        Após uma rápida acolhida nos acomodamos em torno de uma mesa para a entrevista, ou melhor, ouvir o depoimento de dona Sílvia. Ele vai tratar da aventura fantástica de um jovem casal de franceses que sonharam com uma fazenda exemplar na Sesmaria do Ubatumirim, em 1954, quando nem se sonhava com a abertura de estrada para a porção norte do município de Ubatuba. Para se chegar naquelas distâncias tinha duas alternativas: ou se arriscava numa canoa, ou se embrenhava pelos “caminhos de servidão”, subindo morro, andando em praias, atravessando rios, como era coisa comum aos caiçaras daquela época.
        Em um primeiro momento foi explicado do porquê desta entrevista. A aplicabilidade de um projeto muito pessoal que resgata as raízes caiçaras, as diversas culturas que por aqui aportaram, visa contribuir com muitos aspectos da nossa história, inclusive o da preservação ambiental, pois vamos encontrar uma harmonia, uma convivência e uma preservação do espaço que só passa a sofrer profundas alterações após o advento do turismo. Então, se queremos apostar num futuro com turismo de qualidade, pois esta é a vocação potencial do município, devemos investir numa educação que permita revisões importantes em nossas condutas, principalmente culturais. E isso nós sabemos que não acontece num estalar de dedos, como se fosse mágica. Esta entrevista já é um dos frutos deste projeto. Atentemos às palavras da dona Sílvia.
       
        “Nós não caímos do céu, de repente. A nossa vinda para o Brasil foi bem refletida, mas não deixou de ter uma forte dose de ousadia e coragem.
        Meu marido fez, na França, um curso de Agronomia Tropical. Era uma escola para administradores e funcionários do Estado, com a finalidade de trabalhar na África, na Ásia, enfim, nas áreas que eram colônias francesas. Aconteceu que, com a descolonização, acabou tal finalidade. Porém, ele pretendia investir naquilo que aprendeu. Havia também o risco de ser convocado para a guerra (da Indochina). A solução era procurar outro país, começar outra vida praticando as habilidades adquiridas em agronomia e zootecnia. Por isso passamos a fazer uma avaliação dos países, de preferência com características tropicais, examinando bem todas as possibilidades. Pensamos no México e em outros, mas o Brasil nos pareceu mais interessante.
        Passamos a outra fase, que foi de conhecer melhor o país: ouvimos palestras, assistimos ‘slides’, etc. Só sei que ficamos por dentro das culturas mais favoráveis (banana, café, cacau...) e das reais condições para um empreendimento agrícola no Brasil. Assim, no ano de 1948, embarcamos em Bordeaux e desembarcamos no porto de Santos.
        De Santos, uma importante cidade portuária já naquela época, seguimos para a capital paulista. E, modestamente, por eu falar perfeitamente o italiano, pois era italiana de nascimento e, em nossa casa, mesmo estando na França, sempre falávamos a língua italiana, me saía muito melhor que o meu marido que, além do francês, só falava inglês. O italiano é mais compreensível aos brasileiros, né?
        No início, para nos mantermos, começamos a dar aulas de piano e francês. É preciso lembrar que, naquele tempo, a língua francesa tinha um ‘status’ comparável à língua inglesa nos dias atuais. Logo nos encontramos com um patrício que se sensibilizou com a nossa situação e nos apresentou a possibilidade de irmos para a cidade de Taubaté, pois achava que não era uma boa alternativa continuarmos na cidade grande. Disse-nos ainda que nas proximidades de Taubaté e em outras cidades do Vale do Paraíba havia muitas fazendas, com possibilidades de realizarmos o nosso sonho. Assim deixamos a cidade de São Paulo.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

“O dotô disse qu’eu não tenho nada”

         
         Há três décadas, buscando detalhes sobre “o francês que caiu com um avião na serra”, fui conversar com alguns moradores do sertão do Pasto Grande e da Sesmaria, no Ubatumirim. Foi quando eu conheci o Mané Grande, o Antonio Clemente e tantos caiçaras maravilhosos. E lá voltei várias vezes! E lá escutei tantos causos! E lá aprendi muito da história do norte do município!
         Depois desse período, esporadicamente continuei encontrando, no centro da cidade, algumas dessas pessoas. Porém, a maioria delas nunca mais tive o prazer de ver e de conversar.
         Em uma tarde daquele tempo distante, por volta das 14:00 horas, no ponto de ônibus da rua Conceição, quase cruzando com a Rio Grande do Sul, deparei-me com o estimado Antonio Clemente tossindo a cada meia dúzia de palavras. Após os cumprimentos, perguntei-lhe sobre o motivo da vinda à cidade. Ele disse isto:
         - É esta tosse (tosse, tosse, tosse). Faz mais de mês que tô co’ela (tosse, tosse, tosse). De tanta insistênça da mulhé (tosse, tosse, tosse), hoje vim no posto (tosse, tosse, tosse). Levantei cedo, sortei a galinhada no cisquero (tosse, tosse, tosse), descí até a estrada (tosse, tosse, tosse) pra pegá o primero ônibus (tosse, tosse, tosse). Quando cheguei no posto já tinha uma fila (tosse, tosse, tosse); não demorô muito pra abrir a porta (tosse, tosse, tosse). Custô um poco na hora de fazê a ficha (tosse, tosse, tosse). Também custô a chegá o dotô (tosse, tosse, tosse). Quando foi minha veiz de se consurtá, era hora do armoço (tosse, tosse, tosse). Médico é gente; também come (riso, tosse, riso, tosse).  Não demorô e logo vortô para me ixaminá (tosse, tosse, tosse). Escutô o meu peito (tosse, tosse, tosse), perguntô muita coisa (tosse, tosse, tosse); riscô arguma coisa num papé (tosse, tosse, tosse). Finarmente, sem olhá pra mim (tosse, tosse, tosse), disse qu’eu não tenho nada (tosse, tosse, tosse). Tô sossegado. Agora (tosse, tosse, tosse), tô vortando pra casa (tosse, tosse, tosse). Tenho que prendê a galinhada (tosse, tosse, tosse). Quero chegá no serão, mas antes do sereno (tosse, tosse, tosse), senão... (tosse, tosse, tosse) esta tosse pode piorá (tosse, tosse, tosse).
         Após a despedida, segui o meu caminho pensando alto:
         - Coitado do seo Antonio! Se aquela tosse não é nada, o que é então?

Sugestão de leitura: Mitologia grega, de Junito de Souza Brandão.